Professor emérito da Sorbonne, 74 anos, o sociólogo francês Michel Maffesoli, maior teórico da pós-modernidade, vem ao Brasil para o Congresso Mundial de Lazer, organizado pelo Sesc, entre 28 de agosto e 1º de setembro, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Além dele, George Yúdice e Jeremy Buzzel (EUA), Abena Busia (Gana), Alon Gelbman (Israel) e Mogens Kirkeby (Dinamarca) são alguns dos convidados internacionais.
Maffesoli faz o encerramento, no dia 31 de agosto, às 19 horas, falando do tema Lazer sem Restrições – Desafios e Tendências Contemporâneas, analisando a mudança no conceito de ócio. Fundador e diretor do Centre d‘Études sur l’Actuel et le Quotidien (Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano), Maffesoli, autor de 40 livros, boa parte já publicada no Brasil, defende que está em curso uma mudança nos valores da modernidade, substituídos no cotidiano por uma sensibilidade receptiva às diferenças e relativizações. Ele falou com exclusividade a CartaCapital.
CartaCapital: Como o senhor define o conceito de “lazer sem restrição” em uma sociedade marcada por competição, consumismo e individualismo? Michel Maffesoli:Penso que a nossa sociedade pós-moderna não é mais construída exatamente sobre a competição, o consumo e o individualismo. Essas características são da sociedade moderna, aquela da industrialização, do valor do trabalho que se conhecia como contraponto ao lazer. Mas, no que concerne à nossa sociedade atual, que nomeio pós-moderna, o que acontece é uma ruptura com os velhos valores da modernidade.
A sociedade do lazer não é aquela excrescência, um tipo de apogeu da sociedade de consumo, da sociedade produtivista da modernidade, mas o lazer geral no qual a ambivalência produtivismo-reprodução da força de trabalho é sucedida pela parceria entre criatividade e ócio. O ócio está para o lazer assim como a criatividade está para o valor do trabalho.
CC: A devastação do mundo natural e social é mais violenta no Terceiro Mundo, além da guerra contra a democracia, contra a representação, baseada no moralismo, na ideia abstrata de um combate à corrupção. Como o senhor avalia a situação política e social hoje na América do Sul? MM:Devo dizer que me desobrigo, em geral, de emitir uma avaliação política ou social sobre os países nos quais não vivo. Creio que podemos chamar a devastação do mundo, natural e social, como um fenômeno geral. Nós o encontramos um pouco por todo lado. Sim, é possível que tal devastação encontre um aspecto muito mais forte em certos países, como os da América do Sul.
Mas há, no nível do povo, uma forma de resposta a essa devastação. O “net ativismo”, esse que, por exemplo, se desenvolve no Brasil, é uma expressão disso. A longa duração dos fenômenos de resistência, de revolta, de rebelião cara a cara com os poderes políticos e econômicos vai trazer mais e mais equilíbrio. Aquilo que, na minha estreia como autor, no meu livro La Violence Totalitaire, chamei de o poder social. É a partir desse “poder” que vão se desenvolvendo os processos de luta contra a corrupção, os autoritarismos que acredito podem ser tanto de esquerda quanto de direita.
CC: O senhor definiu a sociologia como uma forma de conhecimento que não é mais científico, embora igualmente racional e rigoroso. Como pode essa sociologia explicar a escalada do ódio contra os gays, os negros e os imigrantes em nossa sociedade atual? MM:Eu lembraria que, apesar de certa oposição, da escalada de ódio contra gays, negros e migrantes, nós vemos se desenvolverem ao mesmo tempo as manifestações, mais e mais importantes, e que não podemos reprimir, cara a cara com as mesmas populações estigmatizadas.
Pego um exemplo entre milhares: uma tese feita por um dos meus alunos brasileiros, Marcello de Carmo Rodrigues, sobre um festival gayde Juiz de Fora, mostra bem que não podemos mais marginalizar a homossexualidade e que somos obrigados a integrá-la.
CC: Estamos a 50 anos de distância do Maio de 1968. O senhor pensa que temos hoje a mesma capacidade de ressonância das ações jovens e da vontade popular de mudar o mundo? MM:Os valores daquilo que nós chamamos de eventos de Maio de 1968 acham-se hoje capilarizados na vida social. E as gerações jovens, sem fazer forçosamente referência a 1968, vivem concretamente muitos dos valores que foram elaborados àquela época.
Maio de 1968, parcialmente, consistia na obediência marxista, e não dá conta mais de mudar o mundo de forma geral, de realizar uma utopia geral, mas, se recupero um termo de Lévy-Strauss, trata-se de fazer uma bricolagem de seu próprio mundo e de criar assim o que propus chamar de “utopias intersticiais”. São tipos de nichos dentro das tribos pós-modernas, em particular as tribos urbanas, que as levam a viver uma vida qualitativamente interessante. É esse deslizamento do quantitativo ao qualitativo que é sintomático da pós-modernidade. CC: Como se pode definir sua disciplina ecosofia? MM:Escrevi, em 2017, um livro intitulado Ecosophie, que ainda não foi traduzido no Brasil. Utilizo esse termo para além de uma simples visão ecológica com conotação mais política, mas ligada à sensibilidade, por sua vez em atenção a outra abordagem da natureza. Em seu senso estrito, ecosofia significa sabedoria da casa comunitária. Maio de 1968 Para o sociólogo, a obediência ao marxismo de Maio de 1968 não cabe hoje (Manfred Rehm/AFP) Quero dizer que não considero mais a natureza como algo simplesmente a ser dominado, isso que resultou na devastação do mundo, mas uma natureza na qual nós participamos com interação, com reversibilidade, em conjunção. Certamente, existe uma quantidade de contraexemplos mostrando que a dominação do mundo é ainda um valor presente, mas vejo consolidar-se mais e mais nas massas populares uma atitude muito mais respeitosa do bem natural.
CC: O senhor diz que estamos na passagem do econômico para o “iconômico”, falando de uma rebelião do imaginário. Pode explicar o que isso quer dizer? MM:Refiro-me ao que me parece ser uma rebelião do imaginário que é favorecida pelo desenvolvimento da cibercultura. Para mim, isso define precisamente a passagem da modernidade para a pós-modernidade. A grande dominante dos tempos modernos, a partir dos séculos XVIII e XIX, foi a predominância do valor do trabalho, o que Jean Baudrillard chamou de “o espelho da produção”. O valor do trabalho está em transição, progressivamente, para a ideia da criatividade. Igualmente, a sede do dinheiro, que é o fundamento da economia, não é mais o valor central.
Há formas de solidariedade, de generosidade sobre aquilo a que não se dava mais nenhuma importância. E isso ocorre, evidentemente, pelo compartilhamento das imagens. Lembro que, a partir de Descartes e Malebranche, a imaginação era chamada de “a doida da lógica”, aquilo que não permitia o bom funcionamento do cérebro. Parece que, na contemporaneidade, essa imaginação se torna elemento primordial da vida na sociedade.
CC: No Brasil, temos um sentimento histórico muito próximo da noção de tribo. Isso nos daria uma responsabilidade maior sobre a compreensão do que seja alteridade? MM:O que, em efeito, marca especificamente a modernidade é a redução do outro ao mesmo. É uma negação, uma degeneração da alteridade. Podemos resumir uma certa tendência através da fórmula paradigmática de Auguste Comte, reductio ad unum(redução ao uno). É dessa forma que são constituídos os Estados Unidos unificados, as instituições uniformizadas, e mesmo aquilo que Jean-François Lyotard chamou de “as grandes histórias de referências”. É a partir dessa degeneração da alteridade que se impõe a dominação e a devastação da natureza.
Ao propor a noção de tribo (O Tempo das Tribos – O Declínio do Individualismo nas Sociedades de Massa, lançado no Brasil em 1987 pela Editora Forense), chamo atenção para o fato de que não podemos mais negar certa diversidade. O Outro, o retorno aos Outros, observa-se no desenvolvimento das tribos urbanas, sexuais, musicais, esportivas, religiosas, culturais, mas se encontra igualmente no retorno de certa alteridade no desenvolvimento de uma religiosidade multiforme e em uma concepção mais divina da natureza. Penso que o Brasil pode assumir um papel importante nesse processo, o de “laboratório da pós-modernidade”. CC:
A observação dos ícones culturais é uma tradição francesa. Mas, hoje, quando se vive uma grave crise da indústria cultural, o ponto de vista permanece o mesmo? MM: Lembro a importância da intuição como uma “vista interior”, na qual se acentua a necessidade de compreensão. É a partir daí que podemos encontrar um modo de observação de maior empatia dos feitos sociais, enfatizando a importância dos afetos, das emoções, das paixões que movem, em profundidade, os relatórios sociais. Para isso, é preciso fazer referência ao mundo das imagens, das obras literárias, àquilo que a filosofia de São Boaventura, no século XIII, chamou de exemplarismo. É de fato uma tradição francesa, de dar atenção a esses aspectos. A definição que me permito aplicar à pós-modernidade parte da sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico. Ressalto que a palavra “arcaico” significa, em grego, que veio primeiro, que é fundamental. Donde, para entender melhor, persisto nos signos, e considero que a sociologia do imaginário é onde podemos melhor compreender as mutações de fundo que observamos em nossas sociedades.