Brasil, um boneco desprovido de autoestima

Vieram uns portugueses, casaram com índias e levaram o pau-brasil. Todo.

Depois, trouxeram escravos africanos para cuidar das minas, casaram com as m[en]inas negras e ainda as índias e levaram o ouro para a City, via Tejo. Quase todo.

Aí vieram outros portugueses além desses, em negócios de cana, algodão e café, casaram com as negras, as índias e as mestiças, mas alguns viraram senhores de terras, buscaram as cachopas que viraram madames e formaram a primeira classe dominante.

Finalmente, veio gente da Europa toda e até do Japão. Muitos se enturmaram nos hábitos da terra. Outros, não. Estes, atualmente, são os que mandam.

A casa em que vivi a infância foi construída no Século XIX. Deu goteira, tiramos o forro e o madeirame do telhado era obra fina de carpintaria: um soldado de pau, sustentado pelos sovacos, segurava a estrutura: flutuava no ar, subindo e descendo, só encaixe, nem um prego. Mas a madeira apodrecera: quando cortamos, saiu perfume. Era pinho de Riga.

Em um país coberto de florestas, importavam madeira da Finlândia!

Na década de 1930, as matas de araucária que cobriam o Paraná partiram em toras para Hamburgo e viraram caixotes e traves no esforço de guerra do Terceiro Reich.

Quando a guerra acabou, a moda dos arquitetos dos edifícios modernos era forrar paredes com folhas desenhadas em veios de jacarandá. Sobram lambris no palácio que foi Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, ou na reitoria da UFRJ: dá para ver ainda, entre vasos e quadros de aviso colocados para esconder buracos. Jacarandá, mesmo, não há mais nem para tapá-los. Deixou miséria no Sul da Bahia; depois, plantaram eucaliptos.

Meu pai trabalhava em casa de materiais de construção. Empilhava tacos, tábuas de piso, pernas e coçoeiras de peroba-do-campo, maçaranduba, mogno, gonçalo-alves (assoalho do prédio da falida Manchete, em que trabalhei) … espécies, agora, de jardim botânico.

Um conhecido arrematou um lote de dormentes retirados do Ramal de Mangaratiba, da Central do Brasil, montou uma madeireira e ganhou muito dinheiro: eram de pau-marfim, madeira sem veios, macia, que obviamente não servia para dormentes mas, para decoração, no exterior, custava caro. Se soubesse disso, a fábrica de móveis não teria torneado numa tábua com espessura de mais de um centímetro a porta de um aparelho de som que tínhamos lá em casa.

Para economizar espaço, o que eu disse da madeira dá para dizer de qualquer coisa do reino mineral.

“Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas”, escreveu Drummond falando de Itabira, sua cidade natal. Mas não há mais montanha de ferro em Itabira, a lama das barragens matou o Rio Doce, minério bruto desce a serra em dutos até o porto privado de Açu. Depressa, virando grana pouca, até acabar. E a bauxita, e o nióbio, o que tiver. Estamos há cinco séculos em liquidação.

Certa vez, indo de carro de Belo Horizonte a Brasília, parei num pedaço do chão da lua: lá havia cristal de quartzo que equipou, disseram-me, radares americanos na Segunda Guerra.

Agora é o petróleo. E a nossa inteligência que o tirou do fundo do mar. E os nossos pássaros de aço!

O Brasil me parece um enorme boneco surreal despido de autoestima que, se lhe sorriem, arranca e dá um dedo, um pedaço da orelha ou o buraco do umbigo. Mas, se exigem, e rosnam, treme de medo, rasga o peito, mete a mão, tira um pedaço do coração, e entrega.

Por NILSON LAGE, COLABORAÇÃO PARA O TIJOLAÇO