“País renunciou à sua dignidade”, diz Roberto Amaral sobre desmonte da ciência

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Em meio a uma das maiores crises sanitária e econômica da história do país, o governo federal, na contramão do mundo, ataca e sufoca a ciência – protagonista no combate às milhares de mortes causadas pela pandemia de covid-19.


Para 2021, a proposta orçamentária apresentada pela gestão de Jair Bolsonaro (sem partido) impõe um corte de 27% nos recursos para Ciência e Tecnologia, e uma redução de quase R$ 1 bilhão nos investimentos para as universidades federais, conforme informação da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).


Para Roberto Amaral, ex-ministro de ciência e tecnologia no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a proposta orçamentária atesta a volta do Brasil à condição de “colônia”.


“Para você desmontar o desenvolvimento do país, destruir as perspectivas de futuro, a primeira coisa que você tem que fazer é destruir com a ciência da tecnologia, a segunda coisa, é consequência dessa, a destruição da indústria. Nós estamos reduzidos a investimentos inferiores a 2015. O que havia de indústria nacional foi destruído”, opina Amaral.


De 2003 a 2004, na passagem pelo ministério de Ciência e Tecnologia, Amaral concentrou esforços para implementação de políticas voltadas à redistribuição dos recursos destinados à ciência e tecnologia no combate às desigualdades no país, com ênfase para a criação da Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social.


Sobre a atuação da ciência brasileira na contenção à covid-19, ele não a coloca em primeiro plano, e deixa o protagonismo ao Sistema Único de Saúde (SUS), que segundo ele, evitou um colapso sanitário e social ainda maior.


“O que segurou a expansão da pandemia foi o SUS. O Brasil tem uma tradição muito larga em pesquisa e ciência, mas eu vou colocar uma questão. Nós não temos indústria farmacêutica. Nós não fabricamos aspirina. A grande indústria brasileira é a indústria da embalagem, nós embalamos remédios. O nosso grande papel na pandemia é fornecer pessoas para serem testadas, nós não estamos participando da construção das vacinas, somos excepcionais laboratórios humanos”, considera.


Na política, em 1985, Roberto Amaral foi um dos fundadores, como dirigente estadual no Rio de Janeiro, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), em que exerceu grande liderança ideológica no período de redemocratização do país. Em 2014, se afastou do cargo de presidente nacional do partido quando o PSB decidiu apoiar a candidatura presidencial de Aécio Neves (PSDB), na eleição vencida por Dilma Rousseff (PT).


A dissidência à esquerda o levou a ser um dos idealizadores da Frente Brasil Popular, publicando o livro “A serpente sem casca: Da crise à Frente Brasil Popular”, publicado pela Fundação Perseu Abramo.


Nesta terça (29), às 19h, Amaral é um dos convidados da sexta aula do curso do Projeto Brasil Popular que discute as saídas para a crise no Brasil. Nesta edição, ele e Márcio Pochmann discutem os “Caminhos para Industrialização e Desenvolvimento Científico”.
Confira a entrevista completa:


Brasil de Fato – Como tem sido arquitetado o desmonte da ciência no país?


Roberto Amaral – Isso é um projeto mais amplo, mais profundo, que é o desmonte do país. É o desmonte da economia, da ciência e tecnologia, é o desmonte na ordem jurídica, é o desmonte do conhecimento. Para você destruir com as perspectivas de futuro do país, a primeira coisa que você tem que destruir é a ciência e tecnologia. A segunda coisa é consequência dessa: a destruição da indústria. Porque a indústria exige desenvolvimento, exige progresso, exige investimento.


Nós estamos reduzidos a investimentos inferiores a 2015, em pleno 2020. O governo, além de reduzir os recursos orçamentários, reduz a transferência desses recursos através de portarias, de políticas que não são discutidas com a universidade, com a comunidade e com o Congresso.


O orçamento passa a ser um orçamento fictício, porque o governo só repassa o que é de seu interesse. E, nesse montante que ele repassa, ele congela. Nós estamos assistindo a um processo de destruição sequencial da educação, da ciência, da tecnologia e, por fim, do processo industrial brasileiro.


Só na área das universidades públicas o corte estimado é de R$ 1 bilhão. Ou seja, estamos marchando para um colapso. A estimativa é que o corte dos recursos levará a um corte das bolsas do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] em 64% e um corte correspondente às bolsas da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Significa o fim de mestrados e doutorados, além da tragédia pessoal dos que estão no exterior, dos que estão dependendo dessas bolsas para sobreviverem.


Isso significa, em segundo plano, abrir um canal para que os nossos melhores estudantes, professores, mestres que se formaram neste país abandonem este país. Vão continuar, procurar sobreviver, em outros países. Este é outro crime que está se cometendo: a diáspora científica promovida pelo governo. Não há um só exemplo, em todo mundo, de um país desenvolvido, que não tenha se desenvolvido antes como país industrial. Nenhuma grande potência econômica não é, antes, uma potência industrial, científica e tecnológica.


Estamos vivendo uma tragédia de curto, médio e longo prazo. Mesmo que esse processo seja interrompido, vamos levar muitos anos para recuperar o terreno perdido. Já perdemos a revolução do século 18, do século 19, perdemos a introdução da máquina a vapor, chegamos atrasados à civilização da energia elétrica, chegamos atrasados na civilização do petróleo, e agora estamos ameaçados a perder a decisiva revolução industrial da robótica, da inteligência artificial. Se isso ocorrer, estaremos condenados a ser uma grande colônia por muitos e muitos anos.


A divisão clássica que nós vivemos até hoje, entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, se acabou. A divisão de hoje é entre países produtores de conhecimento e países importadores de conhecimento. A opção deste governo foi pela segunda hipótese: nós seremos importadores de conhecimento, ou seja, uma colônia.


Como o mecanismo da destruição política e física das instituições se expressa, na prática, para além de sua face mais visível, que são as interferências nas escolhas de reitores?


Nós temos um exemplo recente: o que significa você nomear um capitão de mar e guerra diretor da Casa Rui Barbosa? Esse é o símbolo do governo. Nós somos um país ocupado, como foi o Japão no final da Segunda Guerra Mundial, por uma tropa que não está pensando nos interesses do país. Isso está ocorrendo em todos os meios.


Quando você nomeia, em uma lista tríplice, o terceiro menos votado, você está dando indicação de desrespeito à consciência, vontade e interesse acadêmicos. Esse é o quadro: o quadro de desestímulo. Que estímulo tem, hoje, um jovem que está se formando para ingressar na pesquisa? Para ir para um laboratório pesquisar progresso, avanços científicos, pesquisar a saúde?


É um quadro muito grave. Eu não sei se são os problemas de comunicação decorrentes da pandemia, mas nem o país e nem a própria academia estão tendo consciência do significado disso. Não entendo essa calma, essa calmaria, essa paz em torno disso. Quando nós despertarmos, não temos mais universidade.


Você foi um dos personagens centrais para a retirada do acordo entre os governo do Brasil e dos Estados Unidos de exploração da base de Alcântara, no Maranhão, negociando a instalação da Alcântara Cyclone Space-ACS, com a Ucrânia, acordo visto como mais favorável ao país por progressistas, no sentido de alçar o programa espacial brasileiro. Hoje, com Bolsonaro, Alcântara foi novamente entregue aos estadunidenses. Podemos dizer que a relação entre ciência e soberania é um fator determinante para a superação das desigualdades sociais históricas no país?


O Brasil renunciou à soberania sob qualquer aspecto – o político, o ideológico, o formal, o territorial e o militar. O Brasil renunciou à política externa. A nossa política externa, subalterna, é ditada pelos interesses do Pentágono e do Departamento de Estado [dos Estados Unidos]. E o pior de tudo: a troco de nada.


Um país que não tem indústria não tem Forças Armadas. Nós não temos autonomia para fabricar um fuzil. É este país que está sendo instrumento de guerra, provocando a Venezuela.


Somos, hoje, um país que renunciou sua dignidade, seu papel na América Latina. Estamos rasgando a tradição da política externa brasileira, que vem do [Barão de] Rio Branco. As Forças Armadas brasileiras se transformaram em capitães do mato dos Estados Unidos. Nosso papel é assustar os nossos vizinhos, para tornar mais barato o papel dos Estados Unidos.


Não temos mais indústria militar, não temos mais políticas de defesa. A concepção de militar de hoje é a que nós não precisamos ter. Quem vai cuidar da nossa segurança externa são os Estados Unidos, o nosso guarda-chuva. A nós compete cuidar do inimigo interno. O inimigo interno somos nós. São as Forças Armadas que se voltam contra o seu povo.


Em sua passagem pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, um dos pilares de seu mandato foi pensar a ciência de uma forma sistêmica e integrada às demais políticas de governo, como a saúde, a educação e a indústria. Podemos dizer que o projeto de Bolsonaro depende da destruição desse sistema?


Ele trabalha na acefalia. Agora, atrás disso, existe um plano bem estruturado. Nós incorreremos em um erro perigoso se pensarmos que esse governo não tem atrás de si um Estado-Maior pensante. Se examinarmos, fizermos um levantamento desses quase dois anos, se verá que há uma lógica.


A lógica que leva ao extremo é uma associação entre o extremo de neoliberalismo arcaico, que não é professado, mas em nenhuma parte do mundo, associado ao seu antônimo, que é o Estado autoritário. Para isso, é preciso desmontar todas a instituições.


É preciso lembrar que esse processo começa antes de Bolsonaro, antes do bolsonarismo, quando a grande imprensa, em nome de destruir o avanço das massas, a organização popular, os governos petistas, investiram na destruição da política, na desmoralização da política, dos políticos e das instituições. É nesse caminho, na negação do país, que navega o bolsonarismo.


Ele [Bolsonaro] tem uma frase, quando teve uma recepção nos Estados Unidos ao seu guru [Donald Trump], em um jantar na embaixada brasileira em Washington, em que ele diz que o projeto dele não é construir, é desconstruir.


O primeiro projeto do bolsonarismo é desmontar o existente. Daí o enfrentamento que ele fez ao Congresso, à Justiça, à educação, à ciência, à tecnologia; a tentativa de desmontagem do serviço público brasileiro, das empresas públicas, das agências de fomento e investimento no desenvolvimento, como o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], das estatais que atuam em ramos estratégicos, como a Eletrobras, a Petrobras.


Nós somos, hoje, o único país com a nossa dimensão, com as nossas riquezas naturais, que não dispõe de um programa espacial. Quando você não tem programa espacial, você está à mercê de quem tem.


Para nós vencermos o desmatamento da Amazônia, as modificações meteorológicas – fundamentais para a agricultura brasileira -, nós temos que recorrer a satélites dos Estados Unidos ou da França.


O trabalho da ciência brasileira no campo da saúde pública tem sido uma referência mundial. Isso é demonstrado em exemplos como a liderança mundial do Brasil na luta contra o zika vírus, a vacinação contra a febre amarela e a varíola, a cura da doença de Chagas e o enfrentamento à pandemia do H1N1, com a vacinação de 100 milhões de pessoas. Mesmo em meio ao negacionismo à ciência brasileira catalisadas pelo bolsonarismo, que impulsionou centenas de milhares de mortes, o histórico de pesquisa em saúde pública contribuiu para a contenção da covid-19 no país?


Quem segurou a pandemia foi o Sistema Único de Saúde (SUS), uma utopia pensada pelos nossos cientistas, nos anos 1980, e absorvida pela Constituição de 1988. É o maior sistema de saúde pública do mundo, que é admirado em todo mundo e que, neste país, é combatido pela grande imprensa, por grande parte da classe médica e pelo empresariado da medicina privada.


Precisamos prestar uma grande homenagem ao SUS, e a sociedade deve ter consciência de que a tragédia perseguida pelo Bolsonaro não foi maior por causa do SUS. Foi o que segurou a expansão da pandemia.


Mas vou colocar uma questão que, do meu ponto de vista, é grave: nós não temos indústria farmacêutica. Nós não fabricamos aspirina. A grande indústria brasileira é a indústria de embalagem. Nós embalamos remédios. O que tinha de indústria nacional foi destruído. O pouco que é feito aqui é mediante a importação de sais, da Coreia e principalmente da Índia. Isso é muito grave, porque, se admitirmos uma crise internacional, não temos como abastecer a população nacional.


Mesmo agora, na pandemia, o nosso grande papel é fornecer pessoas para serem testadas. Essa é a nossa grande contribuição internacional. Nós não estamos participando da construção das vacinas. Por causa das nossas características territoriais, de população, da diversidade, nós somos um excepcional laboratório humano. Os Estados Unidos testam aqui, a China testa aqui, a Rússia testa aqui, mas não há nenhum projeto brasileiro.


Com a pandemia, cientistas nunca se moveram tão rapidamente, servindo de esperança à população mundial diante do caos instaurado pela covid-19. Fruto disso, são 136 vacinas em desenvolvimento. No Brasil, na contramão deste processo, a proposta orçamentária do governo federal para 2021 prevê cortes significativos na ciência e na pesquisa. O que se pode esperar da ciência e tecnologia com o corte orçamentário anunciado por Bolsonaro? É possível manter a estrutura de cientistas e instituições no Brasil integrada em meio a governos de extrema-direita que estimulam sua destruição?


Tem um plano atrás disso, uma lógica. A lógica da construção da nossa dependência. Este governo se transformou em um oxímoro, nós somos uma grande republiqueta. Ou seja, voltamos ao início do século passado. Segundo esse governo, nós não precisamos produzir aqui o que podemos importar. Nós não precisamos pensar, e há quem pense por nós e mande o seu pensamento.


Parece que é difícil explicar o significado disso à sociedade. É a renúncia à formulação. Isso expande em todo o país. Vejamos o que está ocorrendo na área da cultura, nas artes plásticas, nas artes em geral, ao teatro, à música. É um empobrecimento geral. Podemos pegar um ponto para analisar, mas o que interesse é a obra completa, porque ela tem uma lógica. O empobrecimento da política é isso.


É preciso também lembrar que a classe dominante está incomodada com o que ela produziu. Não basta ficarmos batendo só neste capitão e em seus generais comissionados. Toda vez que neste país há a mais leve ameaça de emergência dos interesses populares, dos assalariados, das camadas mais pobres, a “casa-grande” intervém, sempre com as Forças Armadas atrás. Ela intervém com um golpe de Estado clássico, como em 1964, ou intervém como agora.


Em paralelo ao intervir, há antes um processo ideológico, que é exercido pela grande mídia, pelos grandes jornais. Então, se constrói um discurso e, a partir desse discurso, se justifica a interrupção do processo – pode ser do processo democrático ou do processo desenvolvimentista. Fato é que o Brasil havia optado, em quatro eleições seguidas, por um determinado projeto de sociedade, de desenvolvimento e de proteção dos mais pobres.


Esse projeto incomodou o Estadão, o Globo, a Folha de S. Paulo.


Não cabe mais discutir o lulismo, mas, para destruir o lulismo, a “casa-grande” destruiu com a política. Quando você tira a política do campo, você abre espaço para as Forças Armadas, para as forças mais retrógradas deste país.


O quadro que vivemos este ano não tem comparação com nenhum momento da história deste país. Nem em 1938, quando houve o avanço das forças integralistas e fascistas, nem no tempo do crescimento de Hitler, nunca as forças de direita foram tão fortes. Esta é uma questão central. E nisso que nós, progressistas, e quem, como eu, se julga no campo da esquerda socialista, tem que pensar. Este é o desafio mais perdurante.


Como você avalia a ascensão de movimentos antivacina e pró-cloroquina, e que impactos eles podem ter no prolongamento da covid-19? O Brasil está preparado para outras pandemias?


O Brasil não está preparado para as próximas conhecidas e sabidas pandemias, como não estava para esta. Para as próximas, estará mais enfraquecida do que quando enfrentou esta, porque as nossas estruturas estarão ainda mais fragilizadas. Nós vamos ter, certamente, pandemias próprias. A destruição da Amazônia vai se transformar num ponto de cultura de vírus e de doenças. A tendência é um maior empobrecimento das populações e maior fragilidade delas.


Hoje, 65% das mortes se dão entre pobres e negros, a população das nossas periferias. As nossas periferias vão crescer. A partir desse quadro, temos que nos preparar para momentos muito difíceis.


Pode parecer que o quadro que estamos vendo é um quadro definitivo. Isso é muito ruim. É o suicídio de uma sociedade, e a sociedade não se suicida.


Não há nenhuma possibilidade de progresso, de salvação nacional, com essa atual correlação de forças. Ou seja, racionando pelo contrário, é fundamental alterar essa correlação de forças. Precisamos encontrar meios de derrubar isso que está aí, de avançar com as teses da democracia.


A esquerda [precisa] deixar de ter medo de discutir as suas teses. Vamos tomar a discussão ideológica, vamos a assumir o debate, vamos organizar as nossas bases, vamos discutir a presença do pentecostalismo, do neopentecostalismo, do primitivismo religioso. Vamos discutir tudo, vamos organizar e enfrentar o que aí está. A opção é: o passado ou o futuro.


Por Roberto Amaral

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