Como será a Educação pós-pandemia? Especialistas apontam caminhos para o futuro

Educação

Uma pandemia que fez o mundo parar, trouxe à superfície as contradições do capitalismo e fez a humanidade repensar a competitividade e o individualismo. Em meio a tudo isso, exigem que as crianças e os adolescentes sigam disciplinados, entreguem lições de casa em dia, estudem para fazer provas e exames e se preparem para o que está por vir – mesmo sem saber que mundo os espera quando a ciência conseguir finalmente desvendar este vírus desconhecido, a COVID-19.


Não parece razoável que as escolas tentem ignorar o cenário e manter o calendário escolar. Os desafios são imensos e os empecilhos são muitos. Uma pesquisa da TIC Educação feita em 2019 e divulgada no mês de julho mostra que 39% dos estudantes de escolas públicas do Brasil não tem computador ou tablet, já nas escolas particulares este índice cai para 9%. A desigualdade salta aos olhos. O mesmo estudo mostrou que 30% dos lares não têm acesso à internet.


Fora as questões técnicas que se tornam grandes barreiras para alunos e professores, há dezenas de outros problemas que impedem uma escolarização plena em casa. Muitas famílias não têm a estrutura necessária para acessar ao conteúdo, a carga horária é excessiva, bem como a carga emocional; o distanciamento e a falta de condições impulsiona ainda mais a evasão escolar.


A fim de compreender a dimensão dos desafios de agora e do mundo que está por vir, Carta Maior conversou com três especialistas, educadores com experiência tanto em gestão escolar quanto no contato diário com os estudantes na sala de aula. Entrevistamos o professor doutor José Renato Polli, professor visitante e pesquisador colaborador na Faculdade de Educação da Unicamp, especialista em gestão escolar e políticas públicas educacionais; a professora doutora Daiana Andrade, doutora em Educação e diretora de escola de educação infantil na Prefeitura Municipal de Louveira (SP) e o professor mestre Jean Camoleze, doutorando em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp e educador de jovens e adultos através do EJA.


A conversa se deu a partir do debate “Educação na pandemia do novo coronavírus” promovido pelo Centro de Documentação e Memória (Cedem), da Unesp. Por conta do período atual, tanto o evento quanto as entrevistas aconteceram de forma remota.


Separamos as entrevistas em três eixos: o retorno às aulas e seus desafios, escolarização em casa e a educação pós-pandemia.
Retorno às aulas e seus desafios:


CARTA MAIOR: Quando se pensa em não retornar às aulas presenciais esse ano, jogamos luz à outras questões, como o que fazer com as crianças que não tem com quem ficar, uma vez que os pais vão precisar voltar ao trabalho?


RENATO POLLI: Sim, sabe-se que a pandemia atinge muito mais as populações carentes, que hoje sofrem inclusive com a alta taxa de desemprego no país. Estas populações obviamente possuem muito mais dificuldades para, quando estão em atividade de trabalho, manter seus filhos em casa sozinhos, sem alguém que os acompanhe. É claro que outras parcelas da sociedade também sofrem com esta situação, mesmo a classe média tem se desdobrado para dar conta de cuidar dos filhos, trabalhar (mesmo em home office) e manter as condições materiais e emocionais necessárias para sobreviver à pandemia. Mas os pobres sofrem muito mais. É uma situação bastante complexa. Em países mais socialmente equilibrados, em que o Estado consegue manter as pessoas em casa, com a criação de programas de auxílio, consegue-se ao menos parcialmente manter a situação sob controle. No Brasil, nosso desequilíbrio social atinge as pessoas de formas distintas e o auxílio social é insuficiente. Só vejo possibilidades com a difusão de laços de solidariedade, que muitas comunidades conseguem construir, para que a ajuda mútua promova as condições mínimas para que os pais das camadas mais pobres possam trabalhar e ter seus filhos amparados pelas comunidades onde residem. Mas esta não é a condição ideal, obviamente. As escolas também deveriam ser espaços de acolhimento, mesmo por meios remotos, ajudando as famílias a resolverem suas dificuldades, já que estão inseridas numa comunidade.


CARTA MAIOR: E quando se fala em retorno às aulas é preciso pensar também na estrutura das escolas, a ala privatista da educação parece aproveitar esse período para sucatear ainda mais a educação pública e vender a ideia de que escolas particulares seriam mais “seguras”. Isso leva a defesa da escola pública para outro patamar, não?


DAIANA DE ANDRADE: Sim, a defesa da terceirização dos serviços, incluindo os educacionais, passa por essa lógica de desqualificação dos serviços públicos, quando sabemos que os problemas existentes na escola pública decorrem de uma falta de investimento, da inatingibilidade de um patamar de prioridade por grande parte dos governos, da desvalorização dos profissionais da educação. Há sim muito o que se fazer ainda para que a escola pública possa garantir um percurso qualitativo à toda criança e jovem, o que não significa que o caminho seja a passagem para iniciativa privada, mesmo porque a educação é um direito social a ser garantido pelo Estado, como explicitado pela Constituição Federal de 1988.


CARTA MAIOR: O Governo de São Paulo pretende reabrir as escolas – mesmo que parcialmente – ainda este ano. Como você vê essa proposta? É possível pensar em voltar às aulas presenciais?


JEAN CAMOLEZE: O Governo de São Paulo não consegue estabelecer os recursos básicos, as salas superlotadas e o próprio desrespeito às particularidades das comunidades escolares mostram que a proposta se apresenta como algo distante da realidade escolar. Precisamos pensar nas aulas presenciais, principalmente para os pais que retornaram ao trabalho e que precisam deste momento para realizar suas atividades. Não que o ensino básico seja creche ou algo do tipo, mas precisamos entender que ele faz parte de uma realidade social. Neste momento, entra o diálogo entre professores, gestores, comunidade e o pessoal da saúde. Todos precisam apontar as dificuldades e possibilidades de retorno da aula presencial com a maior segurança possível e garantindo que os valores educacionais não sejam perdidos por causa de um retorno precipitado e motivado apenas pelos valores econômicos.


Creio que seja possível retornar às aulas este ano. Mas o problema é: sob quais condições e com qual intuito. Se o objetivo for de integrar os educandos para com uma socialização e reduzir os danos do isolamento físico e social causado pela pandemia, podemos esboçar um planejamento de atendimento individual do aluno com o educador e com um currículo voltado para a importância da coletividade e da formação integral.


CARTA MAIOR: Já no final da sua participação no debate, você falou algo como “o que a gente precisa fazer é deixar as crianças em paz, elas têm mais o que fazer nesse momento”. De fato, parece impossível recuperar o que se perdeu até agora. Anular o ano letivo de 2020 seria uma opção?


RENATO POLLI: Não anular, mas aproveitar de outra forma, preparando as crianças com dinâmicas de leitura e produção de textos, dando a elas e às famílias suporte tecnológico para estas tarefas, garantindo a merenda escolar e apoio material. Estariam mais bem preparadas para um eventual retorno em 2021. Alguns renomados educadores brasileiros sugerem o cancelamento do calendário letivo. É uma situação excepcional e assim deve ser tratada. Não devemos pensar em perdas neste momento, como se houvesse uma contabilização mensurativista e quantitativista dos processos educativos, que são, a meu ver, não mensuráveis. A razão de ser da escola é a socialização de experiências de vida, incluindo obviamente as aprendizagens que dela fazem parte. A maioria dos educadores compreende a necessidade de ir com calma em relação às condições das crianças neste momento, mas há exageros que seguem esta lógica produtivista, quantitativista, que faz parte do universo de compreensão de muitos professores, lamentavelmente. Cada faixa etária tem suas próprias necessidades. Não se pode querer tratar a todos da mesma maneira.


Escolarização em casa


CARTA MAIOR: A educação à distância parece ter pego a todos desprevenidos, tanto o corpo pedagógico quanto as famílias. Quais as maiores dificuldades que os professores vêm enfrentando neste momento?


JEAN CAMOLEZE: O que está sendo realizado nas escolas particulares e públicas não pode ser considerada como modalidade EAD. Como alunos e professores não foram preparados para utilizar as ferramentas de maneira adequadas, temos uma perda efetiva no processo de ensino/aprendizagem. O ensino presencial não é limitado apenas a aprendizagem de conteúdo, mas também tem em sua essência a formação e o convívio social e parte ontológica do nosso ser. Com isso, familiares e professores encontram dificuldades de estabelecer processos metodológicos que fazem parte da formação cidadã e ética.


Somado a estes elementos, de falta de preparo técnico, plataforma homogeneizadoras e a falta do contato físico/social, existe toda uma pressão psicológica no aluno e no professor. No aluno, muitas vezes por não conseguir acompanhar o conteúdo e não se sentir motivado para estudar, elementos que posteriormente pode colaborar para um analfabetismo funcional e uma maior evasão escolar. Em relação, aos professores a questão psicológica traz sérios riscos à saúde, à vida social e até mesmo o questionamento como profissional. A pressão realizada ao expor sua aula para um computador e na maioria das vezes não obter nenhum retorno, causa um sentimento de vazio durante o exercício da profissão. Isso gera um forte cansaço mental, pois mesmo depois de gastar horas aprendendo a usar novas tecnologias preparando a aula para melhorar a compreensão do aluno, ao não ter um mínimo de retorno o professor se encontra diante de um cenário não propício para exercer sua função com qualidade. Além disso, com as aulas remotas, parece que o educador precisa comprovar sua importância como formador. Dado, que através de canais no Youtube ou outras ferramentas os alunos podem adquirir informação. Mas, é deixando de lado um dos principais pilares da educação, onde informação não é conhecimento e o conhecimento só existe através de relações sociais, por isso existe o professor, um personagem que adquiriu conhecimento e irá trabalhar modos de transformar a informação em conhecimento, auxiliando na construção de sujeitos críticos e autônomos.


CARTA MAIOR: Nem todas as famílias têm a estrutura necessária para uma escolarização em casa. E não estou falando só de internet e equipamentos, tem a questão psicológica e didática. Como enfrentar esse problema? Que alternativas podemos considerar?


RENATO POLLI: Há uma grande diferença entre a família possuir condições de suporte às tarefas escolares propostas excepcionalmente neste contexto e escolarização em casa. Há uma grande confusão que se cria, como se os pais agora tivessem que assumir tarefas que são dos professores. As comunidades escolares, ao menos as que estão no setor público, por meio de suas instâncias (conselhos, comissões e mesmo a equipe de gestão pedagógica) devem orientar e ajudar os pais naquilo que lhes compete, o apoio parcial. A unidade na relação entre família e escola é fundamental neste momento, para que a compreensão mútua prevaleça. Não temos que dar conta de tudo. Trata-se de uma grande ilusão, relacionada até mesmo à nossa cultura existencial sustentada por valores produtivistas, de que tudo deve estar sob controle, nada pode se perder. Evidentemente aquelas famílias que possuem condições materiais e entendimento de que não é fácil viver desta maneira, terão mais condições de levar as tarefas com seus filhos com mais tranquilidade. A presença, o acompanhamento naquilo que for possível compreender e apoiar são suficientes. Para as crianças pequenas, a simples leitura em voz alta, por exemplo, faz todas diferença. Infelizmente temos a predominância de uma concepção de educação produtivista no Brasil, pouco humanizada, que só trabalha com a ideia de perdas a contabilizar. Creio que a parceria entre escola e famílias é o caminho para pensar meios equilibrados de ajuda mútua.


CARTA MAIOR: Você falou sobre como a educação à distância está sobrecarregando as famílias e, principalmente, as mães nesse momento de pandemia. Como essa questão tem chegado até a escola?


DAIANA DE ANDRADE: A escola em que trabalho é de Educação Infantil (crianças de 4 a 6 anos). Temos nos deparado com famílias nas mais diversas situações, algumas conseguem manter um efetivo vínculo conosco, outras nem tanto, pelas condições de vida do momento. Temos construído uma relação de empatia, escuta e diálogo; buscamos não institucionalizar as casas, mas sim preservar o respeito às especificidades das funções da família e da escola na educação das crianças. Dessa maneira temos conseguido entrar nas casas com muito cuidado e fazer compartilhamento de experiências positivas. O Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) alerta para o fato de que o conteudismo sem considerar a pandemia é uma violência à comunidade escolar. Quanto à sobrecarga feminina, está posto que é uma questão cultural e social muito anterior à pandemia, onde no âmbito das relações familiares não há uma igualdade na divisão de tarefas domésticas, no cuidado com os filhos, por exemplo. No entanto, mudanças bruscas como as que foram causadas na rotina em decorrência da situação agravam esse cenário (questões de higiene por conta do vírus, cuidados com todas e todos que estão nas casas, etc). Como mais um componente, se coloca a transposição da escola para as casas por meio de alguns processos equivocados que estão sendo cometidos, o que contribui para esse contexto desgastante para a mulher. É possível perceber nas sutilezas do dia a dia na escola a preponderância massiva da mulher nos cuidados com a educação escolar das crianças: em sua grande maioria, é ela quem procura a escola, que entra em contato, que permanece nos grupos de comunicação criados, dentre outros.


CARTA MAIOR: Você também alertou para o excesso do uso de telas. Pode falar um pouco mais sobre os impactos disso?


DAIANA DE ANDRADE: A Sociedade Brasileira de Pediatria desde 2016 produz documentos com a discussão sobre a saúde de crianças e adolescentes com relação à exposição às telas. Divulgaram dados que sustentam que a exposição precoce, excessiva e prolongada de crianças e adolescente a telas atrapalham as interações familiares, o apego necessário ao desenvolvimento de sujeitos seguros, empáticos e resguardados de problemas como ansiedade, irritabilidade e depressão. O Conanda, em manifesto de maio do corrente ano, aponta que são vários os problemas médicos relatados pelas pesquisas, que denotam que a exposição excessiva a telas, jogos e mídias sociais podem ocasionar desde transtornos do sono; transtornos de imagem corporal e auto-estima; sedentarismo; comportamentos auto-lesivos; dependência digital, entre outros. O referido manifesto destaca esse como um problema complexo que exige dos Sistemas de Ensino a busca por soluções que não negligenciem as necessidades de desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. O documento traz ainda o apontamento de que a exposição excessiva de crianças e adolescente a horas de aulas e exercícios em frente a computadores, celulares, tablets e televisores representa violência simbólica e, muitas vezes, resulta em violência física, sofrida por esses sujeitos ao se recusarem a realizar as atividades escolares a eles solicitadas.


CARTA MAIOR: E no caso dos professores, como essa nova realidade está impactando o cotidiano?


RENATO POLLI: Os professores foram colocados sob uma nova condição de trabalho. Alguns sistemas públicos adotaram meios remotos para a formação continuada e também para as atividades docentes. No entanto, pela falta de uma cultura digital, boa parte deles se viu em dificuldades para lidar com as novas tecnologias. Por um lado, criaram-se oportunidades de aprendizagem e houve a demonstração de que podemos utilizar novos meios para ajudar os estudantes de forma complementar. Mas nada substitui o ensino presencial, o contato humano. Os professores utilizam seus próprios equipamentos, sua internet, sua energia e neste aspecto não há programas complementares de ajuda. Há algumas exceções, alguns municípios do interior de São Paulo aprovaram uma ajuda complementar para cobrir estes custos, mas são exceções. A nova dinâmica do ensino remoto provocou reações fortes, como o aumento da ansiedade, do estresse, do cansaço físico e mental. Para com eles também deve haver compreensão e acolhimento.


DAIANA DE ANDRADE: Os desafios do professor incidem em lidar com recursos tecnológicos para os quais não foi preparado. Além disso, existe a situação que vemos em muitos locais do uso de equipamentos e recursos próprios. Uma pesquisa contida no Guia UNCME (União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação) – Educação em Tempos de Pandemia, indica que 79% dos professores participantes de uma pesquisa indicaram alguma dificuldade causada pela falta de equipamento ou de conhecimento de ferramentas. Há que se considerar também o impacto inclusive emocional que a configuração desse trabalho está causando. Todos e todas estamos impactados de diferentes formas pela pandemia, famílias das crianças, dos profissionais, vivendo a perda, o luto e muitas vezes com uma carga emocional muito forte nessa relação com a escola. Todo o mencionado nos leva a refletir sobre a necessidade de se possibilitar condições adequadas para a realização do trabalho que vem sendo proposto (formação, disponibilização dos recursos, estratégias de acolhimento aos profissionais, para que eles também possam acolher as famílias e as crianças).


Educação Pós Pandemia


CARTA MAIOR: Ao mesmo tempo que debatemos o retorno às aulas, também estamos vendo um desmonte acelerado da Educação pública. Você falou sobre um “enfrentamento de duas correntes de educação”: a ideia de educação como um direito pleno e para todos, e a “avaliativista” voltada à competitividade. Pensar o mundo pós-pandemia pode ser também o momento para repensar esse segundo modelo?


RENATO POLLI: Na verdade, a história da educação brasileira demonstra que a educação sempre foi um campo de lutas entre a ideia do direito à educação para todos e uma prática corrente que deu forma às políticas educacionais, segregacionistas e classistas. Até o início dos anos 70 esta foi a grande realidade. Os pobres podiam estudar apenas até uma fase inicial dos processos de escolarização, nos chamados Grupos Escolares (que correspondem hoje ao Ensino Fundamental I). A partir dos anos 70, a chamada Teoria do Capital Humano influenciou as políticas de educação, dando a elas um caráter tecnicista, empresarial, contabilista, quantitativista. Crianças eram reprovadas por 0,5 pontos na média anual, num projeto arbitrário e autoritário de educação, que não via as pessoas, o cidadão de direito, mas sim um número. Nos anos 90, o Brasil importou um discurso que dava novas roupagens a esta dinâmica, a partir do modelo da reforma educacional espanhola de Felipe Gonzales. O chamado discurso das competências e habilidades caía como uma luva para atender aos interesses dos organismos internacionais que sugeriam, através do chamado relatório de Jacques Delors, uma política mundial de educação para todos. Mas neste “para todos”, em que aparecia uma conceituação de solidariedade como mecanismo de poder, estava presente a ideia de que a escolarização deveria priorizar a formação para o mundo do trabalho. Claro que toda formação escolar, direta ou indiretamente contribui para a formação para o trabalho, mas a questão é que ao definir esta dimensão como prioridade, esqueceram das outras dimensões: a cidadania cultural, a formação integral plena, a cidadania política, o direito ao acesso aos bens culturais acumulados ao longo da história da humanidade. Esta educação como direito, humanizadora, crítica, passou ao largo e só foi recuperada em alguns momentos posteriores por esforço dos setores progressistas da sociedade e de políticas de Estado, que agora vão sendo gradualmente desmontadas. A chamada “reforma do ensino médio”, por exemplo, que agora se pretende implantar no estado de São Paulo, nada mais é que a sujeição plena a um modelo de educação tecnicista de segunda categoria, que retira do aluno o direito à formação plena, integral, humanizadora. Se as condições políticas continuarem assim, sem uma unidade do campo progressista em favor de uma nova condição, dificilmente esta realidade vai mudar. No entanto, como dizia o bom e velho Paulo Freire, a esperança é que move o trabalho dos educadores e educadoras. Acredito na possibilidade de nos refazermos após este processo. Se com relação à própria pandemia já vemos sinais de mudanças de percepção no conjunto da sociedade, na educação não seria diferente.


CARTA MAIOR: Outro ponto que chamou atenção na sua fala foi quando você diz que “escola e família não vão ocupar o mesmo espaço”. Como esses dois ambientes podem trabalhar de forma conjunta para pensar o futuro escolar pós-pandemia? E qual o papel do Estado nesse processo? Como tem sido esse diálogo entre a escola e poder público?


DAIANA DE ANDRADE: A escola e a família podem atuar com laços de parceria, como dito cada qual exercendo seu papel. Mas para que isso aconteça de forma efetiva, é preciso que a escola de fato entenda a comunidade como não apenas receptoras de divulgação de resultados, mas como portadora do direito de participação ativa na construção do trabalho. Esse é um momento que requer como nunca que tal direito seja estimulado como prática das instituições, que o projeto político pedagógico das escolas seja construído e implementado pelos diferentes grupos de sujeitos: profissionais, comunidade escolar como um todo e também pelos e pelas estudantes, que ainda tem pouco espaço de escuta e participação em parte das escolas brasileiras. Alguns municípios estão tratando o plano de retorno, as ações pós pandemia, de maneira democrática; mas há relatos também de locais onde representatividades estão colocadas à margem dos processos de discussão, e encontram-se em atuação para que sejam também consideradas.


CARTA MAIOR: Como podemos pensar um novo modelo de educação – talvez menos competitivo e individualista – para o mundo pós-pandemia?


JEAN CAMOLEZE: Na verdade, quando pensamos em uma educação menos competitiva e individualista, pensamos em uma educação popular. O problema é colocar em prática em tempos atuais. A educação formal primeiro não pode mais manter elencada suas disciplinas com graus de importância e reduzindo o seu papel no fazer de cidadãos com pensamento crítico e mais sensíveis à situação do mundo. Infelizmente, antes e durante a pandemia, vivemos uma pedagogia da ausência, onde os valores individuais e predominação de dogmas são sobrepostos a valores que deveriam estar presentes na educação; como a ética, a coletividade e a responsabilidade social. Intitulo como pedagogia da ausência, pois ao analisarmos os currículos e grades educacionais temos muito bem definidos os conteúdos a serem cobrados no vestibular ou em algumas avaliações, que medem o desenvolvimento educacional, mas deixa ausente o ser humano com a sua essência de ser coletivo e a formação de cidadã.


RENATO POLLI: Eu acredito em gestões democráticas da educação pública. Quanto mais fortalecermos as escolas neste aspecto, mais ajuda mútua virá. Os conselhos escolares, os conselhos municipais de educação, os fóruns de debates são os melhores meios. Os grêmios estudantis, as entidades de classe, os organismos culturais, as associações de moradores, todas estas instâncias podem fazer a diferença neste momento. Já há muitas localidades nas quais a solidariedade tem sido uma marca. A escola pública é um espaço privilegiado para dar apoio às comunidades e também para receber.


CARTA MAIOR: Você falou no debate sobre a discussão em torno das questões educacionais no âmbito comunitário. Seria este o momento para repensarmos a forma como tratamos essa relação escola-comunidade?


JEAN CAMOLEZE: Acredito que passou da hora de pensarmos a escola-comunidade. Em todo momento a escola-comunidade foi uma necessidade eminente, pois ela constrói e fortalece os vínculos, traz o sentimento de coletividade e realça o sentido do público, ou seja, que a escola pertence a todos e todos tem a função de educar. A escola-comunidade tem a capacidade de tornar o abstrato real, ser um lugar de encontro entre os diferentes que se fazem iguais em seus direitos. Lugares onde professores, alunos e a comunidade aprendam juntos. Desta forma seria uma escola humanizada onde a comunidade seria protagonista na formação escolar de maneira continuada.


Infelizmente, os atuais gestores estão indo na contramão das escolas-comunidade. Tanto no aspecto físico, quanto intelectual. Constroem monumentos escolares com arquiteturas que pouco favorecem a aprendizagem, superlota a escola de sala de aulas e anulam a identidade das crianças com a comunidade. A justificativa dos governantes é que a aparência extraordinária é sinônimo de excelência. Mas na prática o que encontramos são escolas que os professores não criam conexões, os gestores passam a serem síndicos e o alunos a mera clientela que não pertence e nem é dono da escola, somado a tudo isso ocorre um distanciamento da comunidade que não vê espaço para ela em um lugar que deveria ser dela por direito. A escola vira lugar apenas de passagem, e não onde se constroem relações e afetos. Muito triste.
Então, hoje defender a escola-comunitária é mais do que uma necessidade e elemento para conquistar uma sociedade mais justa, solidária e que reconheça o público como um direito de todos e não como privilégio de poucos.


Por Mariana Serafini