Belo Horizonte, 27 de agosto de 2018
Oi, Miriam!
Já se vão cinco anos desde aquele 9 de julho de 2013. Muita coisa está do mesmo jeito que você deixou. O relógio da sala continua parado. A impressora permanece sem tinta. A organização da cozinha também é a mesma. Nunca mais fizemos aqueles almoços que você gostava tanto.
Ás vezes, não entendo bem. Tudo parece confuso demais. Ainda assim, carrego a certeza de que essa é mais uma etapa da nossa caminhada. Necessária e passageira. No momento certo, voltaremos a partilhar a vida.
Sinto saudade do tempo em que íamos ao Mineirão ver o Galo jogar. Cada vez que o nosso time entra em campo, sou capaz de vê-la com o manto sagrado. Sempre orgulhosa e altiva, mesmo após as derrotas mais dolorosas.
Mas o que sinto saudade mesmo é de chegar em casa e te contar as notícias da sala de aula. Sigo feliz. Como você sabe, nunca quis fazer outra coisa. Na verdade, fico receosa de dizer o quanto amo ser professora. Temo que as pessoas pensem que vivo num universo paralelo. Acontece que não é bem assim.
Sei quão injusto é o salário que nós professores recebemos. Sei também que o descaso com o ensino público é uma das armas utilizadas pelas classes dominantes para perpetuar as desigualdades existentes no país. Desse modo, ensinar com alegria e entusiasmo é uma das maneiras que encontrei de fazer frente a tudo isso. É uma forma de dizer que não aceito a educação medíocre e alienadora que as elites querem impor a mim e aos meus alunos.
Estou dando aulas para turmas dos 6º, 8º e 9º anos. Algumas professoras me chamam de louca, mas eu adoro ensinar e aprender com os meninos e meninas da antiga 5º série. Acho que você não teria paciência. Em algumas ocasiões, eles me tiram do sério. Por outro lado, são extremamente generosos. Fico completamente tomada por aqueles olhares curiosos. Acho graça das perguntas que eles costumam fazer:
– Professora, a senhora tem marido?
– Professora, a senhora tem filhos?
– Professora, a senhora acredita em Deus?
– Professora, a senhora é católica ou evangélica?
– Professora, deixa eu apagar o quadro?
– Professora, deixa eu carregar a sua bolsa?
Desde o início do ano, adotei a meditação durante as nossas aulas. Foi uma das melhores coisas que aconteceram em toda a minha vida. Quando intuí que exercícios de respiração e o ato de silenciar a mente (e o coração) poderiam ser um caminho para melhorar a concentração e o aprendizado dos alunos, não imaginava que essa prática milenar provocaria tantas mudanças. Em todos nós. Inclusive nas questões de dentro. Ainda vou escrever um livro sobre essa experiência.
Tenho conversado muito com as minhas turmas do 8º ano a respeito de temas como racismo, feminicídio, homofobia e intolerância religiosa. Penso que a escola não pode permanecer alheia às mazelas que nos cercam e afligem. Outro dia, um grupo de alunas insistiu em dizer que há “racismo reverso”. Usei a História, dados e estatísticas na tentativa de desconstruir essa ideia tão equivocada. Sem sucesso. A discussão chegou ao fim somente após as reflexões da Sarah, que com a sabedoria de quem tem 13 anos, disse o seguinte:
– Professora, é claro que não existe racismo contra os brancos! Até mesmo porque, foram eles que inventaram o racismo!
Por fora, me contive. Por dentro, parecia que eu estava comemorando o gol de cabeça do Leonardo Silva na final da Taça Libertadores da América. É por essas e outras que a sala de aula é um espaço que me encanta, fascina e emociona.
Nem te conto do 9º ano. Estamos no final de agosto e ainda não consegui fazer um bom trabalho. Já tentei de tudo que você possa imaginar, mas a maioria dos alunos segue com pouco ou nenhum interesse pelos estudos. A apatia na qual eles se encontram tem vários motivos. Um deles é a educação bancária, que enxerga os estudantes como meros depositários de conteúdos distanciados da realidade vivida. Quase sempre o ato de aprender se resume em fazer cópias, decorar fatos e fórmulas. Com o passar dos anos, a escola perde completamente o sentido. Reverter esse quadro é uma tarefa bem difícil.
As coisas não estão como eu gostaria, porém, aprendi com a Bell Hooks, uma educadora afro-americana, que apenas a força de vontade de nós professores não é suficiente para “fazer da sala de aula uma comunidade de aprendizado entusiasmada”. Saber disso me deixa muito aliviada.
Faz alguns meses que não sonho com você. Na última vez em que estivemos juntas, você disse que não é tão simples vir me visitar. Imagino que deve haver alguém aí que possa interceder por mim. Diga que sinto a sua falta. Quero te ver, ouvir a sua voz. Quero sentir a sua presença viva e intensa.
Preciso ir agora. Tenho uma pilha de exercícios para corrigir. Lembre-se: nunca me esqueço de você. Não há um só dia que eu deixe de pensar em tudo que vivemos ao longo dos 32 anos que você pode estar comigo, conosco.
Até um dia.
Um abraço da sua irmã.
Luana
Por Luana Tolentino – Mestra em Educação pela UFOP. Há 10 anos é professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana da cidade. Suas práticas pedagógicas partem do princípio de que é preciso construir uma educação antirracista, feminista e inclusiva, comprometida com o respeito, com a justiça e com a igualdade.