O QUE É SER DE ESQUERDA EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA?

Concordando com meu conterrâneo Flavio Aguiar, de que temos cada vez mais que falar em “esquerdas” (e com meus colegas da Unicamp, sobre a polissemia do termo e a heterogeneidade do conjunto), inicio por enfatizar que as concepções que elas têm sobre ciência e tecnologia (C&T), apesar de até agora não explicitadas, são ainda mais distintas do que as que ocorrem em outros campos. O fato de que há disputas de sentido a serem precisadas me aconselha a começar com uma taxonomia. E como sei que haverá sempre disputas por hegemonia em qualquer coalizão que as esquerdas venham a formar, me dedico a, depois de apresentar as duas concepções dominantes, advogar pela terceira, com a qual me identifico.

Para elaborar a taxonomia segui minha deformação de engenheiro-economista. Limitei o território tratado ao passado recente brasileiro (ou latino-americano) e, o foco, ao proporcionado pelos olhares indisciplinados dos estudos sobre C&T. E, para apresentá-la, imaginei um quadro sinóptico. Nele, depois de listar na primeira coluna as três concepções, indico, na segunda, como elas entendem a C&T e, na terceira, o que elas propõem em termos de política cognitiva (neologismo que proponho para englobar as ainda separadas políticas de educação e de C&T). Isto é, que ações realizar, que alianças com quais atores com ela envolvidos – instituições públicas de ensino e pesquisa, empresas, órgãos estatais, movimentos populares – se deve privilegiar, no plano da policy e da politics.

A primeira concepção sobre C&T presente num hipotético eixo em que se situam as esquerdas (que é cruzado por ideologias sobre assuntos mais importantes, mas de prazo curto), vou chamar de socialdemocrata. Ela entende que tecnologia é aplicação da ciência – a verdade intrinsecamente boa que avança, universal e neutra (no sentido de não contaminada por interesses e valores) – para produzir mais, mais barato e melhor satisfazer as necessidades da sociedade; mas que, às vezes, devido ao uso da ciência já gerada por interesses escusos, sem ética, a tecnologia pode causar o mal. Mas que, desde que submetida ao controle externo e a posteriori da ética, a ciência pode ser usada para satisfazer infinitas necessidades da sociedade.

Ao rebater esse entendimento no plano da política ela segue, quando e onde governa, um comportamento semelhante ao que seus pares dos países de capitalismo avançado adotaram durante a construção do Estado de bem-estar (e que, depois de alastrar-se pelo mundo, mudou pouco com o neoliberalismo). Ela reforça, então, a tendência da comunidade de pesquisa das instituições públicas de ensino e pesquisa a perseguir a fronteira global da C&T. Com isso se lograria, como ela supõe que lá suceda, que as empresas locais alcancem a competitividade que seria derramada para o conjunto da sociedade (bens e serviços bons e baratos, e empregos melhores e bem remunerados). E como essa empresa deveria aumentar sua atividade de pesquisa e desenvolvimento, caberia aos órgãos estatais subsidiá-la. E estimular a universidade a inserir nas suas agendas de ensino e pesquisa aquilo que ela idealiza (e gostaria que fossem) as demandas cognitivas empresariais que por aqui se fazem ouvir.

Há que reconhecer – como se faz com a exceção para demonstrar a regra – que nos raros casos em que atores dotados de poder econômico ou político demandaram para seus projetos um conhecimento não disponível (como no caso da agroindústria, petróleo), ou acessível (aeronáutica), a política cognitiva implementada, de caráter nitidamente nacional-desenvolvimentista, alcançou uma sinergia atípica na periferia do capitalismo.

Consciente de que a dinâmica global da C&T controlada pelas empresas multinacionais, além do obsoletismo planejado e da deterioração programada, está resultando, também aqui, no desemprego dos profissionais que treinamos para operá-la, essa concepção faz com que se ajude alunos e professores a se tornarem empreendedores subsidiando a criação de empresas de base tecnológica (ou startups) em incubadoras universitárias. Para se contrapor às externalidades sociais e ambientais negativas que essa dinâmica tende a provocar, ela fomenta a responsabilidade social empresarial mediante renúncia fiscal, e aloca recursos para inovação responsável. E financia programas de pesquisa e ensino em organizações públicas e privadas interessadas.

A segunda concepção, que vou chamar de marxista convencional, entende a que a dinâmica da C&T foi progressivamente capturada pelo capital e que por isto elas estão submetidas à sua lógica, ao seu interesse de acumulação e de exploração da classe trabalhadora. Ela atribui o desenvolvimento das forças produtivas, no (e durante o) modo de produção capitalista, ao empenho do empresário em elevar a produtividade do trabalho passível de ser apropriada por ele, dado que garantida pelo estatuto da propriedade privada dos meios de produção. Mas entende que, dado que é linear e inexorável, este desenvolvimento é estruturalmente responsável, no longo prazo, pela mudança dos modos de produção. Dessa forma, sua sucessiva tensão com as relações sociais de produção (escravistas, feudais, capitalistas, socialistas) levaria ao modo de produção comunista.

Um controle pela via da ética (como propõe a concepção socialdemocrata), que penetrasse os ambientes em que a C&T são geradas, além de pouco efetivo, não seria conveniente, talvez fosse contraproducente e até mesmo antidemocrático. Seria, em última instância, uma revolução socialista o que permitiria que a mesma C&T que hoje oprime, amanhã, quando “apropriada” pela classe trabalhadora, poderia (dado que neutra e, por isto, capaz de alavancar qualquer projeto político) ser por ela usada – no âmbito de outras relações sociais de produção – para construir um futuro mais justo.

O rebatimento desse entendimento no plano da política cognitiva, por se basear também na ideia da neutralidade, apresenta diferenças cuja análise é, neste texto, proibitiva. A importância delas, quando cotejada com o risco de ultrapassar o limite do espaço estipulado e, pior, perder em meandros o leitor que me acompanha, me impelem a não apresentá-las. Diferentemente do que ocorre em áreas de política-fim quando distintas ideologias se tornam dominantes (como as de saúde, infraestrutura, relações exteriores) a de C&T, em função da sua aparente neutralidade (e, simplificadamente, bondade), tem se mostrado infensa às ideologias de quem a elabora. Afinal, se para construir o socialismo o que se necessita é a melhor C&T, o que se deve fazer é emular aqui o que se faz de melhor nos países lideres. E qualquer diminuição do recurso alocado para isso será visto como obscurantista. O que não implica que não exista preocupação crescente com os quatro cavaleiros do apocalipse – cientificismo, produtivismo, inovacionismo e empreendedorismo – que estão conduzindo a universidade pública ao suicídio; mas a causa da velocidade como galopam não parece ter sido identificada.

A terceira concepção, vou chamar de solidarista. Antes de apresentá-la, aviso que seu caráter contra-hegemônico obriga que seu conceito e rebatimento sejam por mim colocados – de modo evidentemente enviesado e não neutro – em contraposição às anteriores.

Ela entende que o conhecimento para a produção de bens e serviços, aquilo que contemporaneamente se denomina tecnociência (devido, entre outras razões, à interpenetração do que se conhecia como ciência de um lado e tecnologia de outro), sempre esteve, e nunca deixará de estar, contaminado pelos valores e interesses do ator que controla o processo de produção; e que, por isto, é quem busca, tenta, e pode se beneficiar de sua contínua transformação. O que permite entender que a tecnociência é uma consequência cognitiva das sucessivas, crescentemente informadas, e avaliadas como bem-sucedidas (geralmente em função do seu resultado material) pelos proprietários dos meios de produção envolvidos no processo.

Essa proposição genérica e supra-histórica é complementada por outra que vai no sentido contrário. Somos, no Brasil, 210 milhões; 160 em idade ativa, mas menos de 30 com carteira assinada. E não há nada que indique que a empresa local voltará a investir e gerar o emprego para absorver os 80 milhões que nunca o tiveram e que – o futuro da C&T capitalista permite antever – nunca o terão. Em particular no que se refere à indústria manufatureira, que hoje assina a carteira de apenas 2 milhões de pessoas.

Tampouco é legítimo pensar, à luz do aumento da desigualdade que vem ocorrendo nos países avançados, que uma política cognitiva que torne a empresa competitiva possa provocar o derramamento de bem-estar que alguns ainda esperam. Além do que, há evidência suficiente para mostrar que sua racional estratégia de inovação periférica, imitativa, baseada na renovação de seu equipamento, não é responsiva a essa política; o que a torna, neste plano e com essa míope finalidade, quase inócua.

A primeira proposição explica a degenerescência burocrática do socialismo real. A tentativa de usar uma tecnologia segmentada, hierarquizada, controladora, heterogestionária, alienante e de grande escala (ou seja capitalista), mas que era entendida pelos seus líderes como a melhor para a construção do socialismo, sufocou, pela via do gigantismo estatal, as experiências autogestionárias baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção.

Ela evidencia, também, que o enfoque das esquerdas relativo ao conhecimento para produção dos bens e serviços – os valores de uso que viabilizarão a sociedade do bem-viver que desejam – deve basear-se, no plano da política, nos conceitos de tecnociência e de política cognitiva.

A segunda proposição mostra que nosso futuro de igualdade, à semelhança do que sucede em outros campos, deverá ser construído de modo diferente daquele que propõem as esquerdas dos países avançados. A tecnociência que precisamos não terá apenas que nascer contaminada com outros interesses e valores ao longo de um processo de reprojetamento da tecnociência capitalista. Ela terá que colocar o potencial tecnocientífico de nossas instituições de ensino e pesquisa (que é praticamente o único local onde se pesquisa) a serviço de uma interação com os atores sociais interessados na nossa proposta. Cabe aos seus integrantes de esquerda a iniciativa de acolher a demanda cognitiva embutida em suas necessidades materiais hoje desatendidas.

Dentre os movimentos populares, e mais além dos que já se veem agrupando em empreendimentos solidários, que deverão crescentemente disputar o poder de compra de bens e serviços onde formos governo, essa proposta deve atentar para os movimentos contra-hegemônicos emergentes. Eles estão percebendo que a consecução de suas pautas identitárias depende do atendimento de um dos direitos da pauta socioeconômica que tem sido e continuará sendo negado à maioria dos seus integrantes. Por pertencer àqueles 80 milhões de marginalizados, eles não terão acesso ao emprego e salário que muitas das esquerdas ainda prometem. O alargamento de um canal – alternativo, sem ser excludente – de geração de trabalho e renda que dê vazão ao seu potencial de criação de valores de uso é, também neste caso, essencial.

A construção da plataforma cognitiva de lançamento da economia solidária que devemos fazer crescer nas rachaduras do nosso tecido sócio-produtivo, a tecnociência solidária, é um desafio considerável. Mas, como costuma suceder nesses casos, é também uma oportunidade formidável.

Espero que este texto possa servir para abrir um debate que as esquerdas, por razões de entendimento como as que aqui se expôs, por não quererem contrariar os atores aliados que se apropriaram do discurso e da práxis da C&T ou por não ser esta uma área prioritária, urgente ou demandante de recursos, têm protelado. Muitos dos leitores dirão que o momento em que uma coalizão reacionária implementa uma política cognitiva que, coerentemente com seu projeto de governo fragiliza todas as três concepções das esquerdas ao colocar em xeque o seu próprio sentido, não é adequado. Por várias razões, discordo! Se o debate vier a ocorrer talvez seja possível, atendendo ao princípio democrático da escuta dos entendimentos e dos rebatimentos das diferentes concepções, fazer com que as esquerdas possam aproveitar nosso potencial tecnocientífico para a construção de uma sociedade mais solidária.

Renato Dagnino é Professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp nas áreas de Estudos Sociais da C&T e Gestão Pública.

Coordenou o Curso de Especialização em Gestão Estratégica Pública realizado em parceria com a Fundação Perseu Abramo.