Muito se fala sobre o mundo de startups, mas em geral, tomando partido e analisando-o pelo prisma de apenas um dos atores do ecossistema de inovação: seja o das próprias startups, com seus desafios e glórias; seja o dos investidores, com suas dores e esperanças; seja o das grandes corporações, tentando dar um sentido a tudo isso e se preparar para um futuro que já não conseguem recrutar dentro de seus RHs…
Poucos estão focados em analisar a dinâmica e a sustentabilidade de todo o ecossistema. Afinal, a lógica de jovens empresas tecnológicas, anabolizada por dívidas com nomes “hype” (smart money, equity investing etc.), tentando ir a mercado com produtos e modelos de negócio razoavelmente sólidos (às vezes insólitos) em busca da sua sobrevivência e de, ao mesmo tempo, dar algum retorno ao fundo que lhe emprestou o capital, é algo sustentável, ou até desejável no longo prazo?
Meu objetivo aqui é promover um “salto quântico” e analisar todo o ecossistema do ponto de vista de sua sustentabilidade e até mesmo desejabilidade. Precisamos mesmo concorrer para sermos o próximo “Silicon Valley” de algo?
Um das grandes premissas do movimento socioeconômico startup, que já há algumas décadas captura notícias, talentos, esperanças e dinheiro, é de que estas jovens empresas experimentais têm o poder de catalisar mudanças extraordinárias em mercados inteiros, elevando jovens millenials, cansados da caretice executiva das gerações anteriores (baby boomers), ao patamar de rock stars digitais: novos milionários tatuados que andam de skate, pegam onda e, nos intervalos, tocam suas gigantes digitais.
Poucos ainda acreditam nesta fábula, que serviu bastante para vender livros duvidosos, encher seminários com “empreendedores de palco” e diversas “missões internacionais”, verdadeiros safáris humanos cheios de boas intenções e quase nenhum resultado. Ao final de uma década, viu-se pouco daquilo que se prometia: os galopantes casos de sucessos e seus vários rock stars cavalgando unicórnios de um bilhão de dólares.
Corte para a realidade: o índice de mortalidade de startups permanece maior do que qualquer outra atividade econômica (74% fecham após cinco anos, 18% antes mesmo de completar dois anos, segundo pesquisa da Startup Farm). Em outra pesquisa realizada pela consultoria de dados Parallaxis (2016), 72% das startups brasileiras faturam até R$ 50 mil por ano, sendo que apenas 6% destas têm faturamento de R$ 500 mil ou mais. Ou seja, a maioria estatística de fundadores de startups toca seus negócios já como “lifestyle business”, aquele trabalho que paga as contas, sem luxo, longe da tão incensada “trilha de unicórnios” e seus rock stars. Vivemos uma era pós-deslumbre nos ecossistemas de inovação nacional?
As poucas startups que atualmente se destacam apresentam um padrão que também é um sintoma da fase pós-deslumbre: segundo a pesquisa de dois professores do MIT, Pierre Azulay e Daniel Kim, a média de idade destes fundadores é de 45 anos. Não são jovens recém-saídos da universidade, ou mesmo “startupeiros” de primeira viagem. São jovens executivo(a)s limitados pela hierarquia de suas empresas e que decidem levar o conhecimento e a rede de contatos que têm para empreender fora da organização, às vezes pela segunda ou terceira vez!
Cada vez mais, para inovar e romper estruturas, além do talento, é fundamental que os fundadores já tenham alguma boa… estrutura!
Explica-se: já vivemos a terceira onda da revolução tecnológica que deu origem às startups. A segunda, conhecemos bem, pois vivemos até hoje: internet, redes sociais, aplicativos, empresas que galvanizaram mudanças comportamentais profundas e se tornaram titãs corporativos contemporâneos, como os americanos Facebook, Google, Amazon; além dos chineses Baidu e Tencent. No Brasil, esta foi a época de pioneiros como Buscapé, Mercado Livre e Peixe Urbano.
Muita coisa mudou desde então.
Não há virtualmente mais nenhum espaço para a concorrência no reino das empresas de internet, tomados pela FAMGA (Facebook, Amazon, Microsoft, Google e Apple) e seus rivais chineses, todos com voraz apetite de expansão, incorporando ou exterminando concorrentes. Aqui, já é game over há alguns anos: a segunda onda tecnológica é a produtora dos oligopólios digitais contemporâneos.
A terceira onda tecnológica viceja fora desta terra árida e traz à tona outras tecnologias, cujo potencial de transformação pode ser ainda maior do que as startups de internet da segunda onda. Podem impactar profundamente o dia-a-dia de bilhões de pessoas e o cotidiano de populações inteiras, em áreas fundamentais como transportes, comida e educação, entre outros. Blockchain e DLTs, Inteligência Artificial e Machine Learning, Realidades Imersivas e Biotecnologia… Criar perfis de redes sociais parece de uma singeleza quase cômica, perto de hambúrgueres feitos a partir de células tronco, bancos descentralizados, carros autônomos e robôs superinteligentes.
A terceira onda tecnológica é profundamente verticalizada e especializada. Demanda expertise, recursos e talentos numa escala muito superior à corrida pelo “app de ouro” dos anos 2000. É bem mais complexo criar soluções de inteligência artificial ou robôs para a indústria 4.0, e também bem mais caro. Nenhuma destas novas verticais promissoras poderá ser desenvolvida a contento, sem uma mentalidade global de desenvolvimento e sem fundadores/CEOs/investidores conectados com o estado-da-arte desta tecnologia pelo mundo. Cada vez menos as grandes revoluções e achados de novos produtos e serviços virão de garagens…
Aqui começam os desafios para o ecossistema de inovação e startups do Brasil. O gigante insular pontua sempre muito baixo no que tange à conectividade com seus pares globais, mesmo se considerarmos a hiperconectada São Paulo. No ranking do Startup Genome de 2018, conceituado relatório anual que mede e classifica a saúde dos ecossistemas inovadores globais, a cidade sequer aparece entre os 30 hubs globais mais atraentes. Onde peca? Na conectividade, tanto local quanto global.
A falta de conectividade pode até não ser premeditada dado o tamanho do país, mas superá-la deve ser um esforço constante dos ecossistemas nacionais, como forma de sobreviver a esta terceira onda de startups. A competição agora se dá em um nível de infraestrutura em que o Brasil sozinho tem pouca condição de vencer: acesso a talentos, a parcerias internacionais, a tecnologia de ponta, novos mercados, capital inteligente… Ou as startups brasileiras incorporam uma visão global no seu nascedouro, no seu DNA, ou as próximas décadas serão de colonização digital em que algumas poucas empresas e ecossistemas globais fornecerão nossas plataformas e ferramentas para continuarmos produzindo… nossas commodities e produtos de baixo valor agregado.
Este alerta parece ir na contramão de algumas boas notícias surgidas recentemente no mundo de startups brasileiras. Os primeiros unicórnios surgindo (99, Nubank), relativo otimismo com corporações lançando seus programas de inovação e fundos de corporate venture capital… viveríamos o despertar do potencial inovador do Brasil? Só no ano passado, as startups brasileiras receberam US$ 859 milhões em aportes, o equivalente a 45,4% dos investimentos em novas empresas na América Latina, segundo a Associação Latino-Americana de Private Equity e Venture Capital (Lavca).
Cabe voltarmos à análise crítica do ecossistema aqui. O aumento da especulação financeira, representado pela cifra acima, não reflete necessariamente o aumento da relevância e do impacto global das nossas startups. Em alguns casos, o capital aplicado aí é uma fração ínfima do dinheiro investido por grandes cases de venture capital internacionais, sobretudo asiáticas, em seus hubs de origem, com a intenção de “diversificação de portfólio” ou, simplesmente, de segurar posições competitivas locais. Ou seja, é o dinheiro que sobra, investido para que dê algum lucro marginal…
O capital inteligente é sim uma medida de saúde de ecossistemas de inovação, mas este capital em si carece de inovação! O modelo hegemônico de venture capital, apesar de jovem no Brasil, começou há quase 60 anos nos primórdios do Vale do Silício. Desde aquela época, sua estratégia é buscar recompensa financeira pelo capital de risco injetado em novos negócios. No Brasil e em outras economias emergentes, a recompensa vem sobretudo com a vendas da startup para outras empresas, por um valor multiplicado. Estas “saídas” seriam os “checkpoints” que permitem medir a saúde de um ecossistema e, em última escala, o momento de reciclagem em que o capital injetado na startup retornaria ao mercado em busca de novos casos de sucesso, atraindo mais e mais investidores.
Mas não é bem assim. O retorno do capital não se dá de forma mais ampla e descentralizada, mas sim retroalimenta um grupo cada vez mais fechado de investidores e ecossistemas de startups (ao vencedor, todas as batatas?), que em muitos casos passam a “dar as cartas”, ditar as regras e bloquear o acesso de novos entrantes a oportunidades de investimento. Este fenômeno já é visto há anos na Califórnia, onde um pequeno percentual de grandes casas de venture capital fecham entre si acordos para investimentos mais promissores em um verdadeiro “lobby”, um “acordão” que afunila cada vez mais o topo da pirâmide de oportunidades. Meritocracia? Indiscutivelmente o talento e a audácia destes times são parte deste sucesso, mas num ecossistema que prega a inovação disruptiva, qualquer oligopólio artificial é um risco à livre concorrência e ao fluxo de ideias e oportunidades. E não só do lado do venture capital, vide a torrente de notícias negativas que hoje pendem sobre Facebook, Amazon e Google, todas startups disruptivas que atingiram uma posição hegemônica de dominância do mercado e começam a pagar um preço caro por isso (a União Europeia, por exemplo, multou recentemente o Google em mais de cinco bilhões de dólares por práticas desleais de concorrência com o Android).
Esta tensa relação dos ecossistemas de inovação com tendência centralizadoras e descentralizadoras ganhou um novo ator com o crescimento dos corporate venture capitals, fundos de investimento oriundos de grandes empresas, à caça de inovações que já não são tão capazes de gerar em seus laboratórios de P&D. Montadas em vultosos recursos corporativos, estes fundos atendem a uma demanda das startups de conexão com grandes empresas, já que são estas mesmas que dão as cartas do venture capital. Contudo, o risco de “verticalização da inovação”, em que novas empresas e projetos são rapidamente incorporados às estratégias destas gigantes, pode também ferir de morte a característica disruptiva que esteve na raiz do movimento startup. É como se Davi a partir de agora precisasse da permissão de Golias para atirar sua pedra… O risco a ser evitado é o de que ecossistemas inteiros de startups se transformem em nada mais que uma nova roupagem do P&D corporativo, em novas soluções tecnológicas, serviços e produtos sendo desenvolvidos apenas para atender às necessidades de negócio chanceladas pelas “big corps”.
Os maiores avanços nos ecossistemas globais de inovação virão da descentralização, da distribuição de oportunidades, recursos e estrutura para que uma diversidade maior de startups, empresas e fundos também possa ter acesso ao palco competitivo global. Na terceira onda tecnológica, esta macrotendência se faz ainda mais premente, pois países e regiões que não desenvolvam seus próprios ecossistemas e plataformas inovadoras, ficarão décadas em uma posição de subserviência estrutural ainda maior do que a clássica divisão de trabalho do século passado, em que poucos países produziam bens de alto valor agregado e muitos outros eram “pagos” para fornecer aos primeiros matéria prima, mercado e mão de obra barata. Não estamos falando só de redes sociais hegemônicas agora, mas de inteligências artificiais que administrarão países inteiros, tecnologia genética capaz de curar inúmeras doenças, manufatura avançada e outros feitos que determinarão a viabilidade da vida humana num futuro próximo.
Estes espasmos de descentralização já estão se tornando mais fortes no ecossistema global de inovação. O exemplo mais premente (e contraditório) é de fato a emergência da criptoeconomia e de seu suporte tecnológico, o blockchain. O fenômeno dos ICOs, um correlato cripto da oferta pública de ações (IPO), levantou em 2017 o equivalente a U$5.4 bilhões em recursos para jovens startups do setor e, só no primeiro semestre de 2018, alcançou a cifra de U$6 bilhões, três vezes mais do que o total investido pelo venture capital global em startups iniciantes, U$2 bilhões. Vários governos globais, incluindo o Brasil, já começam a editar regulamentos para administrar esta nova modalidade de investimento ou, em alguns casos, proibir. Contudo, o jogo ainda está só no começo e este é um fenômeno que deixará marcas indeléveis na inovação global.
Outra tendência deste movimento é o foco na gestão de ecossistemas, para além de soluções setorizadas para um ou outro ator. O Outbound Initiative, empresa da qual sou cofundador, desenvolveu uma metodologia de gestão de oportunidades, utilizando novas tecnologias para rastrear novos mercados, contratos e investimentos para grupos de startups e investidores. Na Califórnia, o fundo de venture Social Capital usa big data para analisar milhares de projetos e startups e, por meio de dados, prover um acesso a capital como serviço, procurando fugir das “panelinhas” de investidores e casas de venture capital tão comuns no meio.
Para elevarmos o ecossistema brasileiro de inovação e startups a um outro patamar, é preciso que startups, investidores e corporações passem realmente a se enxergar como pontos, nodos, desta rede global de fluxo de informações, capital, talentos e oportunidades. O modelo de negócio da startup veio para ficar, sua flexibilidade e velocidade representam bem o passo da tecnologia contemporânea. É improvável que os modelos fordistas e tayloristas do século passado retomem qualquer relevância dentro desta terceira onda tecnológica. E pensar como ecossistema é pensar sempre em como equilibrar esta tendência entre centralização e distribuição, caos e ordem, numa cadeia logística global em constante mudança e interdependência.
Por Rom Justa, mestre em psicologia e cofundador do Outbound Initiative. Foi mentor da Endeavor e hoje é membro do Comitê de Seleção do Solution Summit da ONU