Esse post poderia ter por título “vida de trabalhador”, mas achei melhor destacar um fragmento de um dos diálogos mais potentes do filme “Arábia”. Nesse filme, dirigido por Affonso Uchôa e João Dumans, o ator Aristides de Souza interpreta Cristiano, um trabalhador sazonal que registrou em um caderno a história de sua vida pouco antes de morrer.
Aristides Souza realiza uma atuação impecável. Dá vida ao Cristiano, que trabalhou a vida inteira e não tinha nada, nem mesmo sobrenome. Foi trabalhador rural, operário fabril, faz tudo, peão de obra. Em síntese, trabalhou para viver e vivia apenas um dia de cada vez. Ele também passou a vida na estrada, de ponto a ponto a procura de trabalho. Dormiu na rua, em vagas oferecidas por pessoas que conhecera na estrada ou nas cidades em que parava; e terminou sua vida em uma vila operária.
O filme permite um mergulho profundo nas relações desenvolvidas por um homem que nada tinha, e encontrava pelo caminho outros homens e mulheres que também não tinham nada, além da roupa que vestiam e da parca comida que os alimentava. Ainda assim dividiam tudo. Como dividir o que não se tem? Parece um grande mistério, mas é apenas a existência das populações mais marginalizadas que está ali escancarada em cada tomada do filme. Alguns personagens tiveram passagens pela polícia, inclusive Cristiano, mas eram todos honestos e prezavam por uma vida modestíssima, mantida pelo suor de seus corpos.
Ninguém queria voltar para a cadeia ainda que precisassem esfolar seus corpos vivos para que isso não acontecesse.
No meio de toda essa miséria, surgem interações afetivas, amorosas, amizades intensas, carinho, cuidado, dúvidas sobre o que afinal é a vida e uma motivação intensa para continuar vivendo. Cristiano não desiste nunca, mesmo quando o mundo inteiro parece jogar contra ele. Ele segue em frente sem dinheiro, sem casa, sem família, sem nada além da estrada.
No meio do filme ocorre o diálogo do qual retirei o fragmento que dá título ao post. Um grupo de trabalhadores rurais conversava sobre um ex-sindicalista que tinha enfrentado os fazendeiros por melhores condições de vida para os trabalhadores da colheita de tangerina. Dali, depois daquelas lutas, seguiu para São Paulo, e supostamente teria
conhecido o Lula. Naquele momento, já idoso, o sindicalista tinha voltado para a sua terra natal e permanecido nela até morrer.
Não foi por acaso que escolhi esse fragmento. A referência ao Lula não foi acidental no filme e muito menos aqui nesse texto. Lula também é um sindicalista velho, que enfrentou muitas lutas e em todas elas tinha como foco os trabalhadores. Foi para os milhares de Cristianos presentes no Brasil que Lula viveu e vive. Os trabalhadores, esses homens e mulheres que desenvolvem suas existências em meio à miséria material, sempre estiveram no escopo das ações políticas de Luis Inácio Lula da Silva. Eles são muitos, também são brasileiros e quase ninguém lembra deles.
Você, leitor, lembra?
Vale a pena assistir ao filme para lembrar. Ele está disponível gratuitamente no site do Itaú Cultural. Basta seguir o link: https://www.itaucultural.org.br/arabia-mostra-brasil-cinema-agora. Prefiro não dar mais nenhum spoiler. Quem sabe aguço a curiosidade de quem estiver lendo. Em tempos de corona vírus, sugiro o filme também para todos aqueles que estão praguejando contra Deus e o Diabo porque têm o privilégio de ficar em casa. Cristiano jamais poderia ficar em casa porque ficar em casa significaria morrer de fome. Entre morrer de fome ou pelo COVID-19…
Além do roteiro primoroso, o filme também apresenta uma trilha sonora incrível, que começa com o “Blues Run The Game”, do Jackson C. Frank, passa por “raízes”, do Renato Teixeira, dentre muitos outros. Algumas músicas são interpretadas pelos personagens, em seus momentos de diversão.
Cristiano e seus companheiros de vida, de trabalho e de estrada também encontravam diversão. No meio do caos material eles cantavam, chegaram a fazer teatro e viviam juntos. Suas existências superavam a miséria e abriam espaço para questões existenciais que são de todos nós. A vida sempre dá um jeito.
Por Rodrigo Rosistolato