Em 1989, o cientista político americano Yoshiriro Francis Fukuyama tornou-se mundialmente conhecido após a publicação do livro ‘O Fim da História’, onde afirmou que a ‘democracia liberal pode constituir o ponto final da evolução ideológica da humanidade’ e que isso ‘pode não dar espaço para outros avanços’. Considera que, com a derrota do comunismo real pela queda do Muro de Berlim, a sociedade chega à sua estrutura final de democracia liberal. Em seu ensaio, escreveu com audácia que “não é apenas o fim da Guerra Fria ou o término de um período particular da História do pós-guerra, mas o fim da História enquanto tal: ou seja, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma ‘última de governo humano”.
Influenciado pela filosofia de Hegel (1770-1831), Fukuyama apontava o modelo da democracia liberal como a solução final do processo histórico. Durante as décadas de 1990 e 2000 os seus dois livros ‘Fim da História’ e o ‘Último homem’ o angariaram ao prestígio de pensador atuante no neoliberalismo. Sua análise cutucava com vara curta uma esquerda fragilizada. Se tornou a referência do liberalismo.
Desde então, uma grande campanha varreu o Mundo. Uma frase simples – o socialismo morreu – repetida aos quatro ventos, parecia soar como verdade. Articulistas não mediram esforços para louvar as vantagens do capitalismo e seu futuro exuberante. Promulgava-se que havíamos encontrado o modelo ideal de sociedade, em que as forças do mercado, liberadas de qualquer controle governamental ou social, levariam o Mundo à prosperidade, ao bem-estar e à paz. De lá pra cá, muita coisa aconteceu. Proliferaram guerras, conflitos, terrorismo; aumentou a concentração de renda e a desigualdade social; aconteceram sucessivas crises econômicas; explicitou-se a questão ecológica. Mas, curiosamente, nenhum desses aspectos foi capaz de fazer ruir a crença na ideologia neoliberal. Considerar que a História encontrou no neoliberalismo o seu reduto final e pronto.
– Por quê?
Estamos desafiados a esse entendimento. Para aceitarmos o desaparecimento de uma época, devemos encontrar o início da outra. Parece ser essa a questão. A de entender a nova dinâmica da História neste século 21. Sem esse compromisso, só nos restará ficar engolindo os argumentos neoliberais. Considerar que a História encontrou no neoliberalismo o seu reduto e ponto final. Neste quadro é que surge o ‘A História acabou’ de Fukuyama. No ensejo de propalar a vitória do liberalismo sobre o comunismo, vaticinava essa antagônica afirmativa. Promulgava a vitória americana na Guerra Fria. Não haveria mais nenhuma ação sem o carimbo capitalista. O resultado foi à valorização da individualidade através da economia e da perda de valores coletivos. A consequência foi à descrença nos partidos políticos devido a estarem sujeitos ao poder da economia. Um lento suicídio.
Talvez não tenha sido a História, mas os historiadores que acabaram. Neste quadro, a segunda metade do século 20 foi dominada por macro jargões confusos, a não mais pavimentar os caminhos da História. Um deles foi o de Guerra Fria. Estigmatizava uma luta entre o comunismo e o capitalismo. A Guerra Fria foi o pretexto para se conduzir poderes e negócios através de ideologias. As polêmicas de sua realpolitik discutiram às avessas as diferenças entre o mercado e o estado. A sua retórica veio para confundir. Não para salientar a necessidade de uma sociedade se construir na sua expressão individual e manifestação coletiva.
Os homens querem ir para o céu, não conseguem e acabam propondo o paraíso na terra. Essas foram as propostas do comunismo e do capitalismo. Duas religiões laicas. O primeiro a postular uma sociedade sem classes. O segundo a oferecer-lhe o paraíso do consumo. Um a impor a estatização da produção, outro o modo de produção capitalista.
Na sua viagem entre o ser e o ter, os séculos 19 e 20 trouxeram essas suas ideologias para a natureza humana caminhar. E muitas coisas foram feitas, boas e ruins, mas o suficiente importantes para fazer o fluxo incessante da História prosseguir. Hoje, como final dessa construção vê-se a estatização da economia sob a ditadura do Partido Comunista (China) e o predomínio do valor econômico através de jogos financeiros da Wall Street (EUA).
Deste modo, tem seguido a História. A cada época tencionando dar uma chance para o entendimento do Mundo. O capitalismo e o socialismo foram os textos para o cenário dos dois últimos séculos. Longe de serem uma miopia ideológica trouxeram uma reflexão do homem a respeito de seu estado na existência. Cada um estaria a carregar uma parte da verdade. E a perde de seu diálogo, incentivada pela Guerra Fria, fez com que os homens se esquecessem que o seu paraíso terreno está em compatibilizar a liberdade individual com a existência da sociedade. A Guerra Fria só veio para distorcer. Tirar a clareza da intrínseca relação individual-coletivo que cada ser humano está obrigado a entender e participar. No seu lugar criou a projeção liberal-comunista com o slogan de associar comunista a estado forte e liberal a mercado. Não quis entender a comum necessidade de gerar e distribuir riqueza. Preferiu a dicotomia. O importante estava na tomada do poder (e negócios). Desenvolveu a proposta de separar esses dois elementos. Acabou que retirou o ser humano do papel que deveria desempenhar. Não ajudou sua geração a se aprofundar neste quesito existencial de participação que é o de desenvolver sua individualidade e associá-la a uma existência coletiva. A esquecer da História o dito do imperador-filósofo Marco Aurélio: ‘o que é bom para a abelha tem de ser bom para a colméia’.
O relevante a notificar é o de que o motor da História havia sido a relação capital-trabalho e a esperança humana de poder melhorar seu padrão de vida. Então, com a derrocada nos séculos 19 e 20 do trabalho ante o capital, o que sobrava eram somente os caminhos de um estado capitalista e de uma economia privada capitalista. Ambos, cada um ao seu modo, formulariam uma política para o trabalho, mas sempre dependentes dos interesses do capital. Esse era o novo princípio: o de que o trabalho deveria se submeter às regras do capital, a dizer que o melhor do capitalismo é ser capitalista. O resto seria confusão fora de contexto, como fazer da Guerra Fria um momento elementar da História. Na verdade no tempo de Guerra Fria estávamos diante de dois imperialismos.
A dita Guerra Fria nada mais foi do que uma reprodução da antiga guerra de mercados que sempre existiu desde os tempos primordiais da História. E, curiosamente, essa desmistificação dos propósitos da Guerra Fria acabou sendo realizada na linha pragmática de desenvolvimento econômico implantada pelo capitalismo de estado chinês, quando o ministro Deng Xao Ping define que ‘não importava a cor do gato, desde que ele comesse os ratos’. Não foi a queda do muro de Berlim, mas o comunismo chinês capitalista que desmoronou com a Guerra Fria trazendo a prova de que o capitalismo existe tanto via estado quanto via privado. O próprio Engels já havia noticiado sobre essa possibilidade: ‘quanto mais forças produtivas o Estado moderno passa a possuir, quanto mais se torna um capitalista total real, tanto mais cidadãos ele explora. Os trabalhadores continuam assalariados, proletários. Longe de ser superada a relação capitalista chega ao auge’.
Portanto, nem a História acabou, nem o comunismo verdadeiramente aconteceu. As páginas dos jornais é que conseguiram ficar preenchidas. Para elas, o que vale é o show. O engano de primeira página iniciava-se por creditar a fase comunista da História. Confundir o controle do estado sobre os cidadãos acontecido no bloco soviético com a primeva noção em que o comunismo surgia como um estado idealizado além do socialismo. O desassossego jornalístico estava em defender o sistema capitalista por gerando um regime de um comunismo que só havia na cabeça de seus articulistas.
A mídia venceu. Quase sempre o alvoroço é mais importante do que a verdade. Pregando ‘o fim da História’ escondeu que ficamos num Mundo em que nada é feito em função do ser humano, mas sim, em função dos interesses capitalistas. O fato é que a União Soviética creditou mais na solidariedade do que no comércio como meio de resolver as injustiças sociais. Não soube caminhar no comércio. Preferiu falar de desigualdades do que de mercado e não se sustentou. Assim como Aristóteles se negou a falar de aceleração, o comunismo de mercado.
Não foi por sua ideologia que o comunismo não se sustentou. Foi por sua incapacidade de promover negócios. O comunismo perdeu para o consumismo. Talvez haja faltado ao Manifesto de 1848 haver ressaltado a importância do comércio. Definitivamente, Marx considera que é a luta de classes e não a capacidade de trocas o que move a História. Assim também pensaram os padres e doutores da Igreja no Concílio Vaticano II: ‘(…) os bens criados devem chegar, equitativamente, às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade (…). Creditaram mais na solidariedade pela caridade’, não compreenderam que se não surgirem novos negócios nada avança. É assim que caminha a Humanidade.
O comunismo nunca aconteceu. O que aconteceu foi o consumismo. A sociedade em que se pretende que não haja mais propriedade privada dos meios de produção, nem diferentes classes sociais nem os flagelos da exploração e da opressão do ser humano pelo ser humano, ainda é uma utopia. A dita superação do capitalismo e a instauração do comunismo foi um estado de espírito. O fim da Guerra Fria apenas terminou com a discussão se o capitalismo é o melhor sistema econômico. No lugar da irrealidade entre comunismo e capitalismo, revelou as duas faces do capitalismo: o capitalismo de Estado e do dito democrático. Nesta rivalidade interdependente, nem as empresas criam riqueza para a política, no outro para seus acionistas.
O fato é que sob o estigma do comunismo, os partidos políticos estagnaram-se nos últimos 60 anos, desde a invasão da Hungria em 1956, ficando distantes de perscrutar os novos movimentos da História. Ao contrário daquilo que Marx propôs em seu Manifesto Comunista de 1848, não conseguiram reinterpretar a História. A década de 60 já estava propícia a um novo manifesto a respeito de novos agentes da História; contudo, a política optou pelo caminho dos poderes. Ao lado de um sistema enrijecido, os políticos nunca se tornaram críticos de que o motor da História havia quebrado. Em vez de apontar o fim das discussões, da necessidade de uma nova engenharia política, prevaleceu a política de curto prazo. Prevaleceu que o melhor negócio fica na tomada de poder.
Contudo, os críticos não podem dizer que nunca houve comunismo. Deve-se registrar uma ressalva feita pelo cineasta Jean-Luc Goddard em seu filme ‘Nossa música (2004)’ onde diz que ‘o comunismo só existiu uma vez’, quando os húngaros derrotaram os ingleses em 1953. Naquela tarde fria e úmida mais de 100 mil pessoas ocuparam as tribunas do estádio de Wembley, o templo do futebol inglês, para assistir o confronto entre as seleções da Inglaterra e da Hungria. Durante 90 anos, os ingleses nunca haviam perdido um jogo em seu estádio. Comandados por Puskas, os húngaros golearam a Inglaterra por 6 a 3. Os ingleses jogaram individualmente, os húngaros jogaram em equipe.
A Guerra Fria passou e aprendemos que os homens não querem ser comunistas nem capitalistas. Querem chegar a classe média, e depois, a vida eterna. Entretanto não é simples conduzir um povo a conquistar seus direitos de classe média, assim como, fazê-lo assumir as promessas de vida eterna dos Livros Sagrados. Esses são os verdadeiros assuntos para a mesa dos homens. São as questões para fazerem a História caminhar.