O programa do candidato Jair Bolsonaro apresenta na página 46 a seguinte proposta para a área de educação: “Educação a distância: deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais”.
A educação a distância (EAD) é sim um importante instrumento de ensino-aprendizagem, tanto que, pelo Censo da Educação Superior (2016), 33% dos novos universitários ingressaram nessa modalidade. O EAD é, inclusive, usado por várias universidades públicas do país. A UFMG, por exemplo, conta desde 2003 com o Centro de Apoio à Educação a Distância (Caed). Portanto, não podemos falar de um veto dogmático à modalidade. Contudo, ela também não pode ser vista como uma panaceia a ser aplicada em todos os contextos e situações.
Infelizmente, o programa não detalha a implantação do programa e o candidato não o explicou com mais detalhes durante a campanha. Sendo assim, resta fazer uma análise através de matérias jornalísticas no qual ele aborda o assunto. Ative-me a analisar suas falas na reportagem do Jornal O Globo (versão online) do dia 07/08/2018 intitulada “Bolsonaro defende educação a distância desde o ensino fundamental”.
– “Conversei muito sobre ensino a distância. Me disseram que ajuda a combater o marxismo.”
Ensino a distância (EAD) é uma modalidade de ensino, não é uma questão ideológica, você pode ter um EAD marxista, liberal, fascista etc.
– “Você pode fazer ensino a distância, você ajuda a baratear.”
O ensino a distância costuma ser mais barato do que o presencial por alguns motivos, entre eles o fato de que, infelizmente, os professores são normalmente contratados como instrutores, diminuindo assim o pagamento, ou seja, a valorização do profissional. Outro motivo é que se diminui o gasto com a infraestrutura física.
Por outro lado, essa fica a cargo do aluno, ou seja, o aluno tem que ter acesso a computadores e internet (aqui pensando em um EAD online). Como plano de governo é imperativo, então que as casas sejam equipadas com, pelo menos, essas duas coisas. Será que ficaria realmente mais econômico fornecer isso para toda a população? Lembrando sempre que educação não é gasto, é investimento.
– “No fundamental, médio, até universitário. Todos podem ser a distância, depende da disciplina.”
O EAD é uma modalidade de ensino interessante sim, contudo, como foi dito, deve ser aplicado em contextos e situações específicas. No ensino fundamental, as crianças e jovens têm entre 6 e 15 anos. Nesse momento, em especial, a socialização é extremamente importante para o desenvolvimento e aprendizagem. Ao retirar a criança da escola, perde-se uma série de aprendizagens vitais (ex: a negociação com os pares, a convivência com pessoas e ideias diferentes etc.).
Além disso, é no ensino fundamental que se iniciam e se consolidam os processos de alfabetização e letramento. O “mundo virtual” é considerado em si mesmo uma outra forma de linguagem, ou seja, as crianças seriam confrontadas com uma dupla aprendizagem, sem acompanhamento adequado.
– “Fisicamente em época de prova ou aula prática.”
Ou seja, no resto do período a criança e o jovem ficariam em casa. Crianças e jovens não podem ficar sozinhas, isso é considerado abandono de incapaz. O que significa que um dos pais, e, infelizmente sabemos que esse papel é normalmente assumido pela mãe, ao invés de partilhado por ambos, iria ter que sair do emprego, causando perdas na economia. Além, claro, de uma frustração pessoal vinda da não-escolha.
“Bolsonaro disse ainda que “tem muito pai que prefere” alfabetizar seu filho em casa, mas não se posicionou especificamente sobre esse tema.”
Nesse ponto, podemos falar de duas coisas: valorização do professor e capital cultural. Quanto ao primeiro ponto, fica clara a falta de valorização do profissional da educação. As pessoas estudam (muito) para se formarem professores. Ensinar exige conhecimento, não é algo trivial (muito pelo contrário).
O que me leva ao segundo ponto, em sociologia há o conceito de capital cultural (desenvolvido por um francês chamado Pierre Bourdieu, para quem tiver interesse de se aprofundar) que se refere ao acúmulo de cultura legítima que uma pessoa, ou um grupo, ou uma família possuem. Famílias altamente escolarizadas têm no seu dia a dia uma rotina, um pensamento e uma organização de vida que “casa” (não coincidentemente) com a escola.
Famílias com baixa escolarização, ao contrário, percebem na escola e nos seus conhecimentos um mundo diferente do seu. Sendo assim, o “alfabetizar em casa” aumentaria ainda mais as desigualdades educacionais entre esses dois grupos.
“O parlamentar defendeu o movimento Escola sem Partido e repetiu que pretende usar um “lança chamas” no Ministério da Educação para tirar de lá as ideias de Paulo Freire, autor de teorias sobre o pensamento crítico nas escolas.”
Paulo Freire é autor de obras importantíssimas no cenário educacional mundial, seu trabalho traz um conceito essencial: a “educação bancária”. Para ele, o professor não deve funcionar como um banco do qual o aluno “saca” conhecimento, o aluno é parte integral do processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, Paulo Freire é exatamente o contrário do professor autoritário de pensamento único que o movimento Escola sem Partido diz combater.
-“Você pega um garoto chinês, japonês, israelense de 15 anos de idade, ele sabe balancear uma equação química, ele sabe de cor o livro de física de Isaac Newton, já sabe integral, derivada”.
Estou extrapolando aqui imaginando que ele usou como referência os 15 anos por ser um dos momentos da prova do PISA (exame padronizado internacional). Pois bem, o PISA não “cobra” esse tipo de conteúdo, por outro lado é sim uma prova que exige pensamento crítico, análise de contexto, extrapolação do texto, interpretação etc., ou seja, o oposto do “saber de cor”. Esse tipo de educação, baseada em decorar, é uma proposta que provavelmente diminuiria as notas brasileiras.
-“O nosso só tem pensamento crítico, pra saber se vai ser homem ou mulher, essa é a grande decisão da vida dele”.
Identificação de gênero é um assunto extremamente complexo e pessoal. Pessoas que não se identificam com o sexo no qual nasceram não simplesmente “decidem”. O papel da escola é acolher a todos e todas, independentemente da sua identificação e garantir que o ambiente seja acolhedor.
“O presidenciável afirmou que já vem conversando com uma pessoa para eventualmente assumir o Ministério da Educação”.
Um dos principais conselheiros cotados para assumir o cargo é Stavros Xanthopoylos, diretor da Associação Brasileira de Educação a distância.
*Viviane Ramos é professora, graduada em licenciatura e bacharelado em letras pela UFMG; especialista em ensino a distância pelo SENAC-MG; mestre em educação pela UFMG