Qual o papel da ciência em um país dependente?

Para entendermos o papel da ciência, como a Física, em um país dependente como o Brasil, nós precisamos visualizar o papel da mesma na produção e reprodução do capital. De forma geral, todo conhecimento das chamadas “ciências naturais”, ainda que com suas especificidades, terá papel semelhante. Portanto, uma análise do papel do conhecimento nos vale para visualizarmos o processo geral. Podemos iniciar nossa análise a partir de um objeto singular, a ação humana. Partindo do fato de que toda ação humana tem caráter necessariamente técnico, ou seja, já que o agir está ligado a alguma finalidade que o indivíduo se propõe a cumprir, sendo a mesma planejado, podemos afirmar que a tecnologia pertence ao comportamento natural do ser que se humanizou. Consequentemente, a história da técnica é também a história das produções humanas, em seu estágio social [1].

Visto que o capitalismo é definido pela produção de mercadorias, a forma com que essa produção se materializa é baseada neste conjunto de técnicas acumuladas até este estágio social, estando as mesmas cumprindo uma função essencial de aumento da produtividade. Em outras palavras, a condensação e síntese de conhecimento universal em objetos (máquinas) para o aumento da produtividade é o que caracteriza a principal função do conhecimento no modo de produção capitalista.

Nos países centrais a tecnologia proporcionou, no processo de industrialização, um aumento da mais-valia (trabalho excedente, fonte de lucro para os capitalistas) pela troca de capital variável (trabalho humano) por capital fixo (máquinas), aumentando assim a produtividade e diminuindo o custo do trabalho, o que Marx chamou de mais-valia relativa. E qual foi o papel dos países periféricos nesse processo?

Segundo Marini [2] a função dos países periféricos, em especial dos países latino-americanos, foi de “… além de facilitar o crescimento quantitativo destes [países centrais], a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que […] a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador”.

Essa facilitação proporcionada pelos países periféricos para o desenvolvimento dos países centrais iniciou-se na revolução industrial e ocorre por meio da exportação de matéria-prima necessária para a produção das manufaturas, alimento para a reprodução da força de trabalho, até mesmo a exportação de metais preciosos fundamentais para a circulação do capital naqueles países. Ou seja, os países periféricos seriam uma engrenagem fundamental para o desenvolvimento do capitalismo como um todo (Isso significa que não existe falta de capitalismo na periferia, muito pelo contrário, a condição dependente dos países periféricos é a sua única condição possível dentro do sistema capitalista).

Estudos ligados à CEPAL na década de 50 apontaram que além da conhecida relação entre as exportações e importações dos países latino-americanos, algo mais profundo se colocava: o chamado “segredo da troca desigual”, que é a tendência do preço das matérias primas decrescerem em uma taxa maior do que o dos produtos manufaturados, gerando uma tendência de endividamento cada vez maior dos países periféricos. Com isso ficaria claro que a subordinação está ligada umbilicalmente à divisão internacional do trabalho em que os países periféricos se encontram. Essa divisão será determinante na produção de tecnologias necessárias para o aumento da produtividade e isso será também determinante para a (i)mobilidade dentro dessa divisão internacional do trabalho.

Essa subordinação, por não permitir um aumento do lucro por meio do aumento da produtividade nos países periféricos, só deixa uma alternativa: o aumento de lucro baseado no aumento da exploração do trabalho, o que Marini chama desuperexploração da força de trabalho[2].Essa superexploração se dará de várias formas, como pelo aumento da jornada de trabalho ou aumento da intensidade do trabalho, pela diminuição dos direitos trabalhistas, pelo desemprego estrutural que força os salários para baixo, e em momentos de crise até mesmo a suspensão dos poucos direitos básicos, como visto nas ditaduras que foram implantadas nas décadas de 70 em quase toda a América Latina¹.

Partindo da constatação de que a única forma de aumento de lucro nos países capitalistas da periferia se dá através do aumento da superexploração da força de trabalho, podemos agora pensar no papel do conhecimento nesses países periféricos.

Alguns fatos históricos da ciência no Brasil:

Historicamente, a maneira pela qual as burguesias dos países centrais aumentaram seus lucros se deu por meio de investimentos em tecnologias que aumentam a produtividade. No entanto, a burguesia periférica, subordinada ao mercado internacional, fica impedida de buscar seus lucros por este meio. Dada essa subordinação, a burguesia periférica majoritariamente agrária tomará uma posição de passividade dentro do processo.

Na primeira metade do século XX a ciência, que antes era feita principalmente de forma individual e por investimentos privados, se torna política de estado, e passa a ser realizada em larga escala a partir dos grandes entes estatais de coordenação e pesquisa científica: oNational Research Councilem 1916, nos EUA e no Canadá; oDepartment of Industrial and Scientific Researchdo Reino Unido, no mesmo ano; a instituição da Academia de Ciência da URSS como órgão de Estado em 1917; oConsiglio Nazionale delle Richercheem 1923, na Itália; o CNRS,Centre National de la Recherche Cientifiqueda França, em 1941; aNational Science Foundationdos Estados Unidos, criada em 1950 [12]. Esse processo de integração da ciência como política estatal surge de modo a impulsionar a pesquisa e relegar para o estado o risco no investimento em pesquisa básica que antes eram assumidos pelas das empresas privadas.

Esse cenário, que desde a crise de 29 e ao passar também pelas duas guerras mundiais, sofreu modificações e tiveram alguns reflexos na periferia [9]:

– Dec. 1930 a 1950: Devido à queda da demanda internacional por commodities a burguesia industrial Brasileira (Brasil, Argentina, Chile, México, Uruguai e Colômbia, que iniciaram sua industrialização no fim do sec. XIX) ganha espaço na conjuntura para medidas protecionistas, em desagrado da burguesia agrário-exportadora. Entretanto esse processo será obstaculizado pela recuperação da demanda dos países centrais do pós-guerra.

Segundo Marini [2] “A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da produção industrial […], sendo reservadas para os centros imperialistas as etapas mais avançadas […] e o monopólio da tecnologia correspondente”.

Ou seja, o processo de industrialização continuou mantendo o caráter dependente do Brasil, pois a maquinaria necessária não era produzida aqui, mas importada dos países centrais. Esse custo de importação gera uma necessidade de aumentar os lucros através da mais-valia absoluta, realimentando o processo de superexploração e mantendo a fragilidade do mercado interno dos países dependentes.

Entretanto, essa mudança criou as condições para o estabelecimento de um embrião de estrutura científica que funcionou como suporte para as novas condições de produção, de forma que, em 1934, fundou-se a Universidade de São Paulo e, em 1935, a Universidade do Rio de Janeiro [13]. Em 15 de janeiro de 1950 foi criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Com sede em Brasília, o CNPq era o órgão que centralizava a coordenação da política nacional de ciência e tecnologia foi responsável em capacitar o Brasil para o domínio da energia atômica, tema de importância estratégica naquele momento. Físicos renomados participaram da fundação, como César Lattes, José Leite Lopes e Mário Schenberg. Em 1962, tendo à frente Juan José Giambiagi (Argentina), José Leite Lopes (Brasil) e Marcos Moshinsky (México), é criado o Centro Latino-Americano de Física (CLAF), que existe até hoje.

– Dec. 80: Recuperação das economias centrais, raquitismo do mercado interno que tem seu salário médio diminuído quase à metade, e queda do valor dos produtos industrializados forçam o Brasil a um processo em que o crescimento volta a ter participação cada vez maior de exportação de commodities.

– Dec. 90: Surge uma nova fase com a microeletrônica e a automação, gerando um novo ciclo de aumento da produtividade nos países centrais e de dependência nos países periféricos. Aqui no Brasil, em 1985 cria-se o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Por volta do ano 2000 se cria o currículo Lattes, que representou um salto no produtivismo acadêmico, pois sistematizou o controle de produção de artigos, patentes e toda a sorte de produção acadêmica nas universidades e institutos brasileiros.

Durante todo esse processo a tecnologia necessária para o aumento da produtividade veio pronta do exterior, de forma que não houve estímulo para que o progresso técnico fosse desenvolvido da mesma maneira que nos países centrais. Por conseguinte, não houve necessidade de se consolidar a pesquisa em ciência e tecnologia no Brasil de forma robusta, e criou-se apenas o suficiente para a reprodução desse padrão de acumulação².

Breves comentários sobre nossa conjuntura:

Segundo análise recente [3], a maior parte das patentes brasileiras está nos setores de construção e agropecuária. O setor de construção é conhecido por ser um setor de alta exploração do trabalho, visto que exige baixa qualificação e muitas vezes são formados por trabalhos informais. Portanto essas patentes, que demonstram uma necessidade de aumento da produtividade desse setor, indicam que certo grau de mecanização foi conseguido para aumento da produtividade. O segundo setor, o agropecuário, é o responsável pela maior parte das nossas exportações e sua mecanização é um dos principais motivos pelos quais esse setor se mostra competitivo internacionalmente. A mecanização do canteiro de obras e do campo seguem as pistas dadas pela análise das patentes, ou seja, são os dois grandes setores onde o conhecimento é aplicado para aumento da produtividade no Brasil. Outros setores onde há patentes são os setores de energia, petróleo, gás e energia elétrica, que majoritariamente são impulsionadas pelo estado Brasileiro. Comparado com países centrais, entretanto, o número de patentes aqui é irrisório, principalmente quando comparado com setores de alta complexidade, como o setor de microchips e internet das coisas (IoT); setores onde o pagamento de royalties soma bilhões de Reais por ano. Para exemplificar, em 2008, o Japão registrou 239.388 patentes dentro e fora do país enquanto o Brasil registrou 620 (2007) [9].

Já nos ramos de circulação a tecnologia sempre serviu para uma optimização da troca de mercadorias (inclusive da força de trabalho), desde as máquinas a vapor até os modernos meios de transporte. Mais recentemente vimos o crescimento do processo de ‘uberização’ [4] onde aplicativos servem para aumentar a produtividade dos serviços, reduzindo o tempo de entrega de mercadorias bem como de locomoção de pessoas. No setor bancário vemos recentemente a substituição de trabalho por máquinas por meio de inteligência artificial e a optimização de processos por meio de redes neurais artificiais. Todos esses processos ocorrem por necessidade inexorável do capital circular cada vez mais rapidamente. Visto que no setor financeiro as transações ocorrem na escala do microssegundo, essa velocidade de modificação vai se transferindo para os outros setores da sociedade de forma a aperfeiçoar a circulação de capitais [5].

Essa substituição de força de trabalho humana por máquinas é uma contradição central do capitalismo desde seu nascimento e a saída comum para esse dilema nos países centrais fora a capacitação da fora de trabalho para operações mais complexas que aumentam a produtividade ao mesmo tempo em que se aumentava o salário do trabalhador. Já nos países periféricos a superexploração enquanto norma garante a reprodução da riqueza da classe dominante, sem grandes investimentos em tecnologias na produção, com mudanças somente na mecanização do campo, principalmente feitas por importação de insumos em vez de pesquisa e desenvolvimento interno [6]. Nos anos 80 e 90, no ponto mais alto da industrialização brasileira, o setor industrial representou 35% do PIB nacional. Hoje está abaixo de 11% e caindo. Essa mudança estrutural ocorre simultaneamente com a implantação do plano Real e a financeirização da economia. Os empregos mais complexos, em geral localizados na produção de bens industrializados, estão desaparecendo, e com isso resta à classe trabalhadora brasileira o desemprego ou subemprego no setor de serviços.

Com a retração do mercado internacional após a crise de 2008 a demanda por commodities diminui dando fim a um ciclo de crescimento e escancarando a nossa dependência. Em maio de 2019, o número de desempregados atingiu o valor de 13,2 milhões de desempregados e o número de desocupados chega a 28,4 milhões [7]; ao mesmo tempo os maiores “empregadores” são os aplicativos como o Uber, IFood, com cerca de 4 milhões de “empregados” [8].

Tendo como ponto de partida o plano Real iniciado no governo FHC, e continuado por Lula, passando pelo ajuste fiscal no segundo mandato de Dilma (contrariando o voto popular), passando também por Temer e sua reforma trabalhista, e terminando na vala comum do Bolsonarismo, esta crise não dá sinais de melhora, e as projeções de crescimento do PIB já seguem inferiores a 1%, apontando até mesmo para uma possível recessão. O fio condutor de todo esse processo se encontra, portanto, na explosão da dívida, nas privatizações para garantia de lucros privados e na re-primarização da economia, ou seja, no aprofundamento do subdesenvolvimento. Não é à toa, portanto, o ataque do atual governo Bolsonaro à ciência brasileira, uma vez que as condições objetivas que demandavam algum investimento em ciência e tecnologia se extinguiram neste processo, a necessidade de uma ciência autônoma se torna ainda mais longínqua.

Voltando à nossa questão inicial, qual seria então o papel da Física em um país dependente? Partindo do diagnóstico acima chegamos à conclusão de que devemos encontrar uma forma de crescimento que seja antagônica ao capitalismo dependente rentístico. Porém, visto que a classe dominante brasileira (e latino-americana) se beneficia desse processo, não há motivos para acreditar que ela vá se voltar contra o que a nutre, e por isso não devemos nos agarrar às velhas ilusões desenvolvimentistas.

A ciência necessária em um país dependente:

A função da ciência deve ser a busca pela resolução dos problemas do seu país, e em um país dependente e subdesenvolvido não podemos resolvê-los sem a nossa libertação do jugo imperialista. Citando Darcy Ribeiro:

“A constante fundamental é meu profundo descontentamento com a nossa universidade, tal qual é. Descontentamento com sua conivência com as forças responsáveis pela dependência e o atraso da América Latina. Descontentamento com a mediocridade de seu desempenho cultural e científico. E descontentamento com sua irresponsabilidade frente aos problemas dos povos que a mantém.”

Devemos repensar nosso papel enquanto “tabelião de ideias” [1] e nos aprofundarmos nas necessidades das massas que não usufruem das riquezas geradas pela nossa sociedade. Seja na Física, seja em qualquer área do conhecimento, devemos começar a pensar a nossa realidade. Enquanto nossa capacidade de criação intelectual for medida em termos da capacidade de reproduzirmos o conhecimento construído em outra realidade, estaremos fadados à alienação.

Richard Feynman, físico norte americano e ganhador do prêmio Nobel, esteve algumas vezes no Brasil, entre 1949 e 1966. Entre 1951 e 1952 lecionou na graduação em física e engenharia da Universidade do Brasil (UB) e deu cursos avançados no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Baseado na experiência nas aulas para alunos brasileiros Feynman realizou algumas palestras no Rio de Janeiro sobre a situação do ensino de física. Dentre suas críticas podemos destacar [10]:

i) o ensino /aprendizado é quase exclusivamente baseado em memorização;

ii) os estudantes atuam sempre sozinhos e não interagem ou discutem com seus colegas;

iii) a falta de liberdade no ambiente universitário; isto impede os estudantes de mudarem de área ou de laboratório;

iv) pouca atenção é dada ao conjunto maior de estudantes que não pretendem ser cientistas;

v) outro ponto característico da América Latina é o pequeno número de pessoas envolvidas em atividades cientificas, o que torna as organizações e instituições irregulares e instáveis;

vi) os melhores alunos tendem a sair de seus países e se dirigirem para o exterior.

Como podemos ver, o problema do “tabelião de ideias” foi percebido pelo senso crítico do estadunidense. Acompanhando essa crítica devemos apontar que o ensino da física continua com os mesmos problemas. A bibliografia utilizada na graduação é toda estrangeira, com pouquíssimas exceções. Sem sombra de dúvida o ensino básico também é acometido pelo erro fatal da memorização de fórmulas sem conexão com a realidade. Pergunte a um bom aluno do ensino médio a fórmula da Lei da Potência elétrica de um resistor e ele saberá soletrar

“P = V² / R”,

mas dificilmente ele saberá que o chuveiro elétrico da casa dele funciona a partir de um resistor e, portanto, uma rede de 220 volts esquenta 4 vezes mais a água do chuveiro que uma rede 127 volts, e é por isso o eletricista recomenda colocar 220 volts na casa para economizar energia! Esse é um exemplo explicito de como a desconexão entre o academicismo memorizador do conhecimento construído por outros e a vida cotidiana das pessoas reflete nos livros didáticos e retroalimenta essa alienação cientifica. Fica claro, portanto, que a produção de livros didáticos genuinamente brasileiros e que combatam essa alienação deve ser uma tarefa que devemos ter como horizonte imediato.

O outro problema citado pelo Físico é a colonização do nosso pensamento científico. Em uma fala ácida ele diz, se referindo ao Brasil [10]:

“[…], é absurdo, porque qual o motivo pelo qual temos de nos sentir em pé de igualdade com outro país? Nós temos de fazer as coisas por um bom motivo, uma razão sensata; não apenas porque os outros países fazem”.

Ou seja, ele entendia a necessidade de os países terem uma ciência própria, que pense os problemas locais. Mesmo sem ser um revolucionário ele faz a crítica ao colonialismo científico que encontrou aqui no Brasil. Porém, uma crítica realmente contundente ao colonialismo deve passar pelo nacionalismo, pois, como Waldir Rampineli afirma [11]:

“O nacionalismo é a consciência de que nossa dependência e nossa pobreza não são fatos naturais e necessários, mas, sim, mecanismos de acumulação para as classes dominantes dominadas internas e dominantes externas. Igualmente, é a consciência de que o subdesenvolvimento é resultado de um modo de implantação e organização das sociedades nacionais como projetos forâneos, destinados a enriquecer mais aos outros do que a si próprios”.

Portanto, a crítica ao colonialismo e a alienação científica dos países dependentes passa pela apropriação do significado do nacionalismo. Analisando deste ponto de vista uma “ciência sem fronteiras” nada mais é do que a materialização mais explicita, em forma de política pública, da ideologia colonizada e antinacional sobre o que é ciência. Pelo contrário, a ciência periférica deve ter como meta a nacionalização do melhor da ciência mundial.

Esse processo de adaptação institucional da ciência brasileira aos mecanismos de acumulação das metrópoles não se inicia com o ciência sem fronteiras, tem como primeiro sintoma a formulação do currículo Lattes, dos mecanismos de avaliação do CNPq que classificam a revistas “internacionais” como prioridade de publicação em detrimento das revistas nacionais e até mesmo as revistas de outros países dependentes, dentre outros fatores que fomentam o produtivismo acadêmico em detrimento do pensamento crítico, que exclui o estudante independente, rejeita o ousado e presenteia o reprodutor da última moda que, em busca de citações dos pares, não pode perder tempo refletindo sobre sua realidade sob o risco de não ser aceito pelas bancas de avaliação, perder vagas de emprego como pesquisador ou bolsas de fomento para sua pesquisa. Em suma, penaliza o rebelde não-acadêmico e esteriliza o potencial intelectual.

Enquanto a pesquisa brasileira é publicada em revistas “internacionais”, que nada mais são querevistas nacionaisdos países centrais, os pesquisadores da centralidade do capitalismo tem organizado um sistema de pesquisa e inovação tecnológica que conjuga investimento do estado, empresas privadas e cientistas capazes de traduzir em mercadorias esse compêndio de artigos exportados dos países periféricos. Fechando o ciclo de dependência e alienação, esses países vendem para a periferia os produtos resultantes da síntese dos trabalhos acadêmicos feitos aqui, mas que somente nos países centrais encontram condições de se materializar. Exportamos artigos científicos e pagamos Royalties para importar a tecnologia gerada por aquele conhecimento.

Para dar um exemplo atual dentro da física, desde 2012 existe oSisNano, que é um sistema de laboratórios direcionados à pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) em nanociências e nanotecnologia, que financia o estudo do grafeno em muitos laboratórios pelo Brasil. Apesar deste esforço importamos todas as TV’s e smartphones vendidos aqui e cuja a produção destes o grafeno e outros nanomateriais são largamente utilizados.

Portanto, a ideologia do produtivismo acadêmico não só limita a pesquisa, mas é chave fundamental de transferência de riqueza da periferia para a centralidade do capitalismo. Logo, uma ciência verdadeiramente comprometida com os problemas do nosso país deve combatê-la com vigor. Devemos ter como princípio que a produção de inovações tecnológicas devam ser pensadas para a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora, e isso as agências de fomento devem, juntamente com outras políticas de estado financiar pesquisas de bem comum e que sejam geridas de forma descentralizada, algo como um cooperativismo científico, diferentemente do empreendedorismo individualista hoje abertamente incentivado pelos núcleos de inovação tecnologia (NIT’s) dentro das universidades.

Outro papel essencial da ciência se encontra na soberania do país em fazer suas escolhas politico-econômicas em relação a, por exemplo, suas fontes de energia. O Brasil detém grandes reservas de material fonte para a energia nuclear. Por qual razão devemos abrir mão de termos conhecimento e técnicas apropriadas para a utilização dessa fonte de energia. Nosso programa nuclear, contrariando os especialistas da época, foi construído importando tecnologia da Alemanha em uma caixa preta, sem que a intelligentsia brasileira tivesse acesso aos conhecimentos ali condensados. Paralelamente, a Argentina optou por um projeto Nuclear autônomo e diferentemente de nós conseguiu um nível de conhecimento do tema suficiente para exportar tecnologia de centrifugas para combustível nuclear. Como disse José Leite Lopes [14]:

“Por que havemos, então, de esperar sempre que nos países avançados se descubram as técnicas, se as patenteiem para as importarmos mais tarde pagando direitos cada vez mais caros?”

Infelizmente, esse problema não se encontra “[…] no fato numa falta de compreensão, por parte de nossas autoridades, do verdadeiro significado da pesquisa científica para o desenvolvimento econômico do país”[14], como afirma José Leite Lopes, mas na necessidade de desenvolvimento desigual do capitalismo e do papel dos países periféricos nessa dinâmica.

Além do papel da soberania energética há também o papel decisivo da soberania bélica, assunto profano dentre muitos ecossocialistas. Não é possível combater o imperialismo sem que possamos ter soberania do ponto de vista da força, por tanto, o papel da energia nuclear nesse processo deve ser debatido sem mistificações.

Por fim, a verdadeira ciência, crítica em sua raiz, parte do pressuposto da indignação com a realidade e, portanto, a ciência e o capitalismo em sua fase mais avançada se tornam antagônicos, e um exemplo recente pode ser visto pelos movimentos da “terra plana”. Falsificações da realidade são mecanismos recorrentes em momentos de crise do capitalismo, já que na contradição entre necessitar dos avanços tecnológicos para crescimento econômico e a impossibilidade de aplicar esses avanços para uma real melhoria da vida, toda sorte de ideologias surgem para tentar representar objetivamente essa contradição. Um exemplo clássico fora a ideologia da “raça ariana”, que apesar de claramente ser falsa, serviu naquele contexto para justificar um modo de produção e acumulação específico [15]. No contexto atual, onde a ciência aponta para uma crise climática, causada pelo capitalismo, sem precedentes, surgem ideologias que tem como função desacreditar a ciência. De tal forma que a crítica à ciência alienada traz a necessidade da defesa de um nacionalismo revolucionário, que combata o colonialismo e o capitalismo, ou seja, que combata a exploração do homem pelo homem.

A nossa saída é lutar pela Revolução Brasileira.

Por Yuri Müller