Hoje precisamos ir além de Marx. Não se pode prescindir do autor de O capital, mas a mutação ocorrida no capitalismo exige novas análises”. Sindicalista, líder político, militante antagônico inclusive aos oitenta anos, completados em março passado: Fausto Bertinotti intervém no debate sobre as desigualdades a partir de reflexão proposta nos últimos dias por Donald Sassoon, segundo a qual a batalha pelo meio ambiente é a edição atualizada da luta de classes.
A entrevista com Fausto Bertinotti é de Simonetta Fiori, publicada por La Repubblica, 17-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

“Mas isso não é verdade!”, reage o ex-presidente da Câmara, que continua a se declarar teimosamente “comunista”.

“Agora não vou recorrer à maldosíssima epígrafe que descarta como ‘jardinagem’ a ecologia desvinculada do conflito social. Mas o ambiente tirado da luta contra as desigualdades é apenas óleo no motor. Agora devemos nos perguntar para onde esse capitalismo está nos levando. Parece-me para uma crise de civilização”.

Eis a entrevista.

Mas a atenção ao meio ambiente não exclui o combate às desigualdades, pelo contrário. Como demonstram os garotos da Friday for future.


Claro! Mas me parece que Sassoon tende a subestimar as desigualdades, considerando-as fisiológicas.

Eu não diria isso. Sassoon parte de uma consideração mais geral difícil de contestar: o capitalismo deriva sua legitimidade do fato de que os bisnetos dos proletários ingleses da revolução industrial estão muito melhor do que seus ancestrais.

Do ponto de vista do consumo, é uma reflexão fundamentada. Mas até mesmo os trabalhadores da primeira industrialização – cujas descrições nos faziam estremecer – estavam em melhor situação do que os escravos. No entanto, esse não é um indicador do nível de civilização. Junto com os elementos econômicos, há questões que dizem respeito ao sentido da vida e da comunidade: o processo de espoliação do atual capitalismo impressiona. E as crescentes desigualdades são a figura predominante desse sistema: como se fossem lentes de aumento sobre a natureza específica do novo capitalismo.

O que você entende por novo capitalismo?

É o capitalismo financeiro global que foi se configurando após o final do ‘século breve’ e o esgotamento do protagonismo da classe trabalhadora, paralelamente a uma gigantesca revolução tecnológica e científica. Concordo com Luciano Gallino, que percebe o signo social desse novo sistema na neutralização do conflito de classes. E se o ciclo anterior – aquele fordista e o taylorista – sofria ou aceitava a redução das desigualdades, esse novo tira a sua força irrefreável da produção das disparidades.

A esquerda reconhece o erro de não ter sabido atualizar uma instrumentação cultural antiquada, incapaz de ler o novo.

Mas em que deveria consistir uma reelaboração? Na substituição da luta de classes pelo ecologismo? Parecer-me-ia uma rendição e uma catástrofe.

O que propõe? Você continua a se definir como anticapitalista.

Se por superação do capitalismo entende-se uma reedição do socialismo do século XX – a ideia de uma revolução acompanhada por um desenho social preestabelecido e completo – acredito que essa alternativa não seja viável. Aquela do século XX é uma história acabada, mesmo que eu seja filho dela. E reivindico as grandes conquistas do movimento operário, hoje atingidas por uma insuportável damnatio memoriae.

Então, o que você espera?

O principal motor da crítica ao capitalismo contemporâneo hoje deve ser buscado nas muitas revoltas que abalam centenas de países no mundo. A política está morta em todos os lugares e a sociedade desperta na rebelião. Da França à Espanha, da Argélia ao atual movimento negro nos EUA. Essas revoltas têm uma característica comum: são imprevistas, não programadas. E não têm líderes. Parece-me que ali deve ser buscada a chama da construção de um futuro diferente.

Mas você defende a abolição do capitalismo, que é uma solução rejeitada pela história.

Vamos colocar desta forma. Não sei mais se sou a favor da subversão total do sistema capitalista. No entanto, estou convencido de que o atual arranjo financeiro global seja incompatível com a democracia. Não chego a dizer como Žižek que o Covid-19 é o vírus do capitalismo, mas com certeza deve ser visto como um vírus no capitalismo. A pandemia jogou na nossa cara todos os problemas coletivos e institucionais e as feridas sociais e ambientais produzidas por esse sistema.

Você acha que o capitalismo possa mudar?

Já está mudando: é uma besta vital formidável que entendeu que não pode prosseguir com as velhas ferramentas do neoliberalismo ou da austeridade. Basta ver a maneira fulminante como imprimiu a mudança nas políticas econômicas na Europa. Para evitar o risco dramático da recessão, houve um apelo à intervenção pública, anteriormente proibido. Mas, ao mesmo tempo, as empresas pedem ao Estado para ter mais liberdade sobre a força de trabalho: a sua mutação já está em curso e fala de solidão e desconhecimento dos direitos. E pedem maior influência na governança geral da sociedade. A política está agora reduzida à pura administração.

Foi Marx quem percebeu a capacidade do capitalismo de assumir diferentes formas. Alguns malignamente afirmam que o autor de O capital teria sido mais compreendido por financistas e empresários do que por seus opositores, enrijecidos por dogmas ideológicos.

Qualquer empresário inteligente entende que Marx é imprescindível. Mesmo quem se move no lado crítico deveria saber disso. Um legado extraordinário.

A gigante Google dedica a ele 93 milhões de links.

Quando o capitalismo se torna um problema, é obrigatório voltar para aquele que primeiro e mais organicamente sentiu suas contradições. Claro, cabe a estudiosos mais refinados do que eu atualizar aquele legado que continua sendo necessário.

O que o torna ainda vivo?

A ideia da revolução como a categoria mais alta alcançada pela política. A ideia de que se possa transcender a ordem das coisas existente. Observo como hoje estão reduzidos os governos democráticos europeus: parecem caricaturas. Os atuais reformismos não são comparáveis com experiências políticas do passado, como o centro-esquerda de Pietro Nenni, que na época – pensem! – parecia-me uma concessão ….

Falando nisso, você não tem arrependimentos? Você não acha que se o seu radicalismo tivesse dado lugar a um reformismo honesto, hoje teríamos um país melhor?

Os reformistas tiveram espaço quando uma tendência revolucionária estava presente no corpo social: do contrário, teriam sido impotentes. O Estatuto dos Trabalhadores, a reforma mais poderosa que tivemos na Itália, é fruto de uma época radical. Agora me vem à memória uma frase de Vittorio Foa, que, no entanto, é cínica demais para ser relatada.

O que ele dizia?

Na Itália não há diferença entre reformistas e revolucionários. Os revolucionários não fazem a revolução. E os reformistas não fazem as reformas.

Por Fausto Bertinotti