No início do século XX, os partidos social-democratas revolucionários europeus propunham-se a “nacionalizar a terra” quando chegassem ao poder. Coerentemente com o projeto de acabar com a propriedade privada dos meios de produção, tratava-se de tornar o solo agrícola um bem comum, a ser coletivamente aproveitado pelo conjunto dos trabalhadores rurais, ou camponeses.

O líder revolucionário russo Vladimir Lênin percebeu, no entanto, que essa palavra de ordem não era entendida e aceita pelo campesinato de seu país. Embora, na sua imensa maioria, não fossem proprietários, os camponeses sonhavam, algum dia, possuírem um pedaço de terra. Além do mais, eram quase todos analfabetos, incultos (no sentido iluminista da palavra), fervorosos religiosos, submissos à palavra dos padres de aldeia e à imagem quase divina do Czar. Não lhes era difícil acreditar que os “bolcheviques”, por baixo daquela palavra de ordem, queriam, na verdade, tomar ou roubar suas terras…

Lênin entendeu que seria necessário chegar junto da consciência real do campesinato ainda que, para ele, “atrasada”. E formulou uma nova palavra de ordem: “toda terra ao camponês”. Diante desse lema, os ouvidos camponeses se abriram à pregação bolchevique. Eles passaram a prestar atenção ao discurso urbano revolucionário, assim se forjando a aliança operário-camponesa que levaria à Revolução Russa.

Décadas depois, o sociólogo francês Lucien Goldman, influente em meados do século passado, quase esquecido (infelizmente) hoje em dia, formularia a hipótese da “consciência possível”: a compreensão da realidade por um grupo social, passa por um discurso que nasça das condições subjetivas determinadas por essa própria realidade. Assim, aos poucos, associando-se discursos e práticas políticas, eleva-se a consciência de si desse grupo até que compreenda a necessidade e possibilidade de modificar sua realidade, rompendo efetivamente com ela. Ou seja: se o discurso que se pretende “progressista” ou “avançado” não é aderente à realidade concreta de vida das pessoas, essas pessoas simplesmente não vão ouvi-lo, ou até mesmo reagirão negativamente a ele.

Lênin não era, por óbvio, um teórico de comunicação. No entanto, compreendeu intuitivamente uma lição básica que muitos teóricos, de Bakhtin a Paulo Freire, de Gregory Bateson a Umberto Eco, iriam desenvolver ao longo do restante do século: o significado de uma mensagem encontra-se na mediação dos interlocutores. A “verdade” não é aquela na cabeça do “falante” por melhores ou mais justos que sejam os seus argumentos, mas é aquela que pode ser manifestada se e quando “falante” e “ouvinte” conseguem se pôr de acordo sobre os termos da conversa. Sem esse acordo prévio, o “falante” vai ficar falando sozinho. Por isso, não raro, há que se “descer” à realidade do “ouvinte” para torná-lo, pelo menos, um “ouvinte” interessado. Aliás, é justo isto que costuma a fazer qualquer bom orador, ou qualquer professor competente.

As derrotas acachapantes das esquerdas nas últimas eleições municipais, em São Paulo e Rio de Janeiro, para ficarmos só nessas duas cidades, e, pior, derrotas por 7 a 1 para tipos medíocres como Dória ou Crivella, já deveriam ter acendido a luz amarela no PT, PSOL, PCdoB, demais partidos ou movimentos a eles ligados. Não é possível explicá-las, puerilmente, como tem feito, em entrevistas, Fernando Haddad, como resultado de uma “onda anti-petista”. Resultam de muitos fatores conjugados, inclusive do desastre dos governos Dilma Rousseff, do golpe judiciário da Lava Jato, das mobilizações de certos segmentos sempre golpistas da classe média contra “a corrupção” (os mesmos segmentos, com os mesmos argumentos, que apoiaram o golpe de 64, elegeram Collor em 1989 etc.), da campanha da grande imprensa contra o PT, de ações obscuras motivadas pelos interesses estratégicos dos Estados Unidos, mas nada disso poderia ter alcançado a força discursiva e simbólica, logo política e eleitoral, que alcançou se não encontrasse ouvidos abertos para escutar e aceitar suas mensagens. Os votos da classe média golpista não elegeriam, por si só, Dória ou Crivella. Eles foram eleitos pelo que se chama “periferia”: foram eleitos por esses que a Esquerda gosta de chamar “pobres e negros”. No Rio, claramente, Crivella, no 2º turno, só não venceu em alguns bairros de classe média, ou, como diria a própria Esquerda, bairros de “elite”: Laranjeiras, Botafogo, Copacabana, Tijuca, Jardim Botânico e avizinhados. Ganhou muito bem ganhado em todos os bairros onde vive a população de baixa renda, inclusive nas grandes favelas do Rio. Em São Paulo, com Dória, não foi diferente: até pior, pois Haddad foi derrotado, no 1º turno, em todas as zonas eleitorais, sem exceção.

Há algo aí que não parece racional, ao menos à primeira vista. Afinal, segundo se dizia e até se provava com números, a vida das pessoas pobres teria melhorado muito nos governos Lula, tanto no Nordeste (que segue “lulista”) como no Sudeste e em todo o Brasil.

Desnecessário relacionar aqui os muitos programas de largo alcance implementados por Lula e, também, Dilma que ampliaram a capacidade de consumo e a mobilidade social das camadas sociais de baixa renda. Esperava-se, pelo menos, gratidão dessa gente. Mas o que se viu foi o contrário. Mostraram-se ingratos nas eleições municipais de 2016 e confirmaram-se ingratos nesta eleição presidencial: os votos dos “pobres e negros” no Rio, São Paulo, outras grandes capitais, inclusive também Recife e a maioria das capitais do Nordeste e Norte, destinaram-se a Bolsonaro. Para piorar, alguns campeões da resistência ao golpe, como a própria Dilma Rousseff, Requião, Lindbergh, não conseguiram se eleger ou reeleger para o Senado. Em compensação, Janaína Paschoal obteve mais de 2 milhões de votos para deputada estadual em São Paulo. Tipos absolutamente rastaqueras (para dizer o mínimo), como Alexandre Frota e Kim Kataguiri, também se elegeram deputados. A “elite” tem tantos votos assim, em São Paulo?

Ora, é muito fácil constatar qual discurso foi ouvido por essa multidão que consagrou Bolsonaro e todos e todas que a ele se ligaram, nesta campanha eleitoral (“multidão”, aqui, no seu sentido semântico usual, milhões de pessoas, não no conceito pseudosociológico ilusionista que lhe deu Antonio Negri): foi o discurso moralista e comportamental. A “corrupção”, claro!, mas também o “gênero”, o “aborto”, o “gay” e temas similares. Bem o disse Ciro Gomesquando perguntado a respeito: “quero ser presidente da República, não fiscal de costumes”. Outro tema, importantíssimo, foi a “violência” – mas não a violência “contra a mulher” ou “contra a juventude negra”, não a violência que pretende identitariamente distinguir (num certo sentido bourdieuriano) as vítimas, mas a violência contra qualquer pessoa, a violência que atinge todos e todas indistintamente, a violência que é, sobretudo, sentida diretamente, cotidianamente, pelos mestiços moradores e moradoras das periferias de nossas grandes cidades, seja vinda da polícia, seja vinda do PCC, CV ou de alguma outra milícia.

Sobretudo, a violência do dia a dia, física e também subjetiva, aquela das horas perdidas num transporte público superlotado, do péssimo atendimento num hospital público, da escola que não ensina nem educa, sobretudo a violência do emprego precário em condições opressivas e sem perspectivas. Converse-se com o porteiro, com balconista da farmácia, loja de bairro ou de shopping center, com cabeleireiro(a), motorista de táxi, entregador de pizza, converse-se com toda essa arraia miúda, nas nossas grandes cidades, a imensa maioria não esconderá seu anti-petismo ou anti-lulismo. Falará da “corrupção”. Mas falará também do “casamento gay”, do “kit gay” – e decide seu voto para prefeito ou presidente por oposição a esses (supostos) valores. Não faltam, nas listas esquerdistas do WhatsApp, testemunhos perplexos ou atônitos dessa reação.

Não é um fenômeno brasileiro. Aliás, exatamente por não o ser e por já ter sido apontado por analistas no exterior, já teria sido possível neutralizá-lo por aqui. Em janeiro de 2017, a líder feminista estadunidense Nancy Fraser, num texto contundente, intitulado “O fim do neoliberalismo progressista” (https://bit.ly/2ive0Tj, acesso em 11/10/2018), mostrava como as pautas identitárias ou comportamentais haviam muito contribuído para a derrota de Hillary Clinton diante de Trump. Do outro lado do espectro político e há mais tempo, Scott Maconnel, já detectara e até comemorava o mesmo fenômeno no artigo “Abandonados pela Esquerda” (https://bit.ly/2PvexCh, acesso em 11/10/2018).

A classe operária, escreveu, em sua grande maioria constituída por homens brancos que vinham sendo pesadamente atingidos pela desindustrialização e empobrecimento dos Estados Unidos, sentia-se ainda ofendida por um discurso feminista que parecia fazer de todos os homens brancos, por definição, machistas misóginos desprezíveis. Ao substituir a luta por maior justiça social pelas causas identitárias, o partido Democrata parecia ter “perdido o seu caminho”. A vitória eleitoral de Trump, dois anos depois desse artigo, parece ter confirmado a tese como, aliás, atestou Nancy Fraser.

Mais recentemente, em março último, outro analista estadunidense, Mark Lilla, em entrevista para a Folha de S. Paulo, reforçou a hipótese: “Esquerda deve tirar foco da pauta identitária para ser eleita”, declarou (https://bit.ly/2NCXkoN, acesso em 11/10/2018). Ao apresentá-lo as seus leitores, a Folha informou que Lilla já se tornara “o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda”, ao criticar, em artigo no New York Times, logo após a vitória de Trump, o programa identitarista do Partido Democrata.

O que há de errado com essas políticas? Obviamente, em princípio, tratam de questões sérias e, de um ponto de vista progressista, justas. Mas não tratam dos problemas reais de milhões de pessoas, não importa o “gênero”, não importa a “raça”, pessoas massacradas pelas políticas neoliberais e pela globalização. Tratam de problemas que têm mais a ver com segmentos social e economicamente beneficiados pelas lógicas de produção e consumo do capitalismo “pós-fordista”, do que dos vivenciados pelos estratos que se percebem esmagados na base da pirâmide social. São agendas perfeitas na Dinamarca mas se, mesmo nos Estados Unidos já causam tanto desagrado, opondo a esvoaçante Califórnia ao Meio-Norte enferrujado, imagine-se num país como este Brasil, com sua mestiça periferia excluída e violentada! Essa periferia está respondendo ao seu abandono pela Esquerda, caindo nos braços do fundamentalismo vigarista evangélico e da direita virulenta bolsonazi.

Os perdedores da globalização, em todo o mundo capitalista ocidental, migraram para a direita. Não é um fenômeno novo. O mesmo aconteceu na Alemanha, nos anos 1930. A base social do nazismo, os soldados das SSAA, era o lumpemproletariado, os desempregados pela grande crise. E o líder máximo era, ele mesmo, um lúmpem. Aliás, intelectualmente, Hitler e Bolsonaro quase se equiparam embora aquele tivesse algum maior estofo intelectual. Chegou a escrever um livro e apreciava Wagner…

O problema dessa gente é de classe social, não é de “gênero”, “raça” ou “comportamentos”. Porém, como é sempre mais fácil, na cabeça ignorante, buscar algum “culpado” para as suas próprias frustrações – o inferno são os outros, dizia Sartre –, líderes populistas, explorando os seus complexos e preconceitos (a consciência real), conseguem mobilizá-los, apontando-lhes para a “causa”: os judeus, os mexicanos, os imigrantes… o PT corrupto. Noutros tempos, travando luta de classes, a Esquerda conseguia também mobilizar ao menos a parte trabalhadora da população, para enfrentar esse obscurantismo lúmpem, nem que fosse (e só podia ser) pela luta armada: Guerra Civil espanhola, Segunda Guerra mundial. Nestes novos tristes tempos em que vivemos, ditos “pós-modernos”, o populismo fascista passou a contar com a ajuda (involuntária?) da própria Esquerda, ou da parte hegemônica dela, que trocou a luta de classes por movimentos comportamentais e identitários.

O problema atual, porém, não reside apenas na superfície do “neoliberalismo” ou da “globalização”. Há que ir mais fundo. O capitalismo promoveu nesses últimos 30 anos, movido por sua lógica de acumulação, uma ampla reestruturação nos circuitos de produção e consumo, tendo por vetor a introdução de sistemas automatizados de trabalho que estão substituindo uma grande massa de trabalho humano de baixa qualificação por trabalho mecânico automatizado, trabalho de máquina “inteligente”. Uma grande parcela da população está, simplesmente, sendo excluída de qualquer possibilidade de conseguir algum emprego minimamente decente. Essa parcela deu origem, em todo o mundo capitalista avançado, incluindo o Brasil, a uma enorme camada social de subempregados urbanos que alguns já denominam “precariado”, nome elegante para o nosso velho “lumpemproletariado”…

O sociólogo estadunidense Benjamin Barber publicou, na década 1980, um livro antológico que deveria ser leitura obrigatória de todo esquerdista, ao invés de Bauman ou Negri: Jihad X McMundo. Nele, ele mostra como os excluídos da “globalização”, fossem muçulmanos, cristãos, hinduístas, não importa, vinham reagindo violentamente à opulência, cinismo e “liquidez” (a la Bauman) do capitalismo consumista (“McMundo”), pregando o retorno da humanidade a uma vida “encantada”, ao obscurantismo medieval, a um passado utopicamente descrito como “imóvel” ou “estável”. A penetração entre nós das seitas evangélicas, cuja capacidade de influência política anti-democrática já se tornou inquestionável, é apenas a expressão brasileira desse fenômeno mundial.

O tão badalado “projeto neoliberal” foi a proposta conservadora para a transição que o capital promovia. A Esquerda, por que também inserida no McMundo, preferiu responder aderindo à “luta por direitos”: substituiu seus antigos compromissos revolucionários pela ideologia liberal, no sentido “esquerdista” que esta palavra tem na política estadunidense: o contrário de conservador. Esse “discurso dos direitos apareceu como oposto a – no lugar de ser uma etapa no progresso até – modos alternativos de reparar a sujeição social que se expressa como identidade politizada”, acusou Wendy Brown em contundente “crítica dos direitos” (“O que se perde com os direitos”, em State of Injury). Não mais a luta para transformar a sociedade mas apenas para se ajustar a ela na melhor posição possível, função da capacidade de mobilização competitiva desse ou daquele movimento social. É a consagração da ideologia liberal burguesa.

O PT, ao longo de sua história, tornou-se, no Brasil, o partido dessa Esquerda liberal (ou “neoliberalismo progressista”, nos termos de Fraser). Ao substituir a luta de classes pela “pobretologia”, como ironizou a historiadora Virginia Fontes (https://bit.ly/2AFnJwe), uma “pobretologia” consumista que sonhava inserir-se no McMundo (de resto impossível como os tempos não demoraram a mostrar), o “lulismo” acabou viabilizando uma aliança entre uma classe média por si tradicionalmente reacionária com esse novo “precariado” ignorante, obscurantista, ressentido, não raro violento em suas atitudes individuais ou coletivas porque violentas, no nível da mais hobesiana competição, objetiva e subjetivamente, são suas condições de sobrevivência cotidianas. Suas demandas não são atendidas por um programa partidário que ora se dirige ao que resta do proletariado “fordista” (carteira de trabalho, 13º salário etc.), ora fala aos liberais de Esquerda. Ao incluir, por exemplo, num programa de governo para Presidente da República, “promover o direito à vida, ao emprego e à cidadania LGBTI+” e o que se segue nas linhas seguintes (https://bit.ly/2Okkju5), como se esses e essas cidadãos, boa parte dos quais são pessoas bem situadas de classe média, devessem ter um tratamento distinto do de qualquer outra pessoa, o PT, com toda certeza, perdeu ou deixou de ganhar milhões de votos entre os assim ditos “pobres” – e crentes. Pior, mandou a maior parte deles para o seu adversário. Como também cresceu ainda mais a intenção de votos em Bolsonaro justo após a inequivocamente poderosa manifestação feminista #EleNão.

Expliquem… Gente situada à Esquerda, através dos Twitters e Facebooks da vida, começou a reclamar dos “pobres de direita”, dos “negros de direita”, dos “gays de direita”, como se qualquer dessas condições, por si só, gerasse alguma substância esquerdista. Não se dá conta de que há algo errado no discurso ou, melhor dizendo, na agenda. Insiste nas mesmas mensagens que já haviam derrotado Hillary Clinton; no Reino Unido ajudaram na vitória do Brexit; vêm asfaltando o caminho da Direita por toda a Europa, sem falar no desastre político e cultural que já produziram no Oriente Médio e adjacências. A “globalização” capitalista, carente de uma resposta política radicalmente transformadora, produziu, como seu oposto, um “precariado” também global, porém agarrado aos seus mitos adâmicos identitários ou religiosos.

No Brasil, neste momento, esse neolumpensinato vai consagrar Bolsonaro. Viveremos uma nova longa noite, até porque a Esquerda liberal nos desarmou para os tempos duros e violentos que vêm pela frente. É claro que, a esta altura, é tarde para se gerar e difundir alguma forte mensagem que possa ser primeiro escutada, então entendida, pela consciência real dos novos “camponeses” desta nossa época, mensagem que poderia leva-los a acreditar na possibilidade de uma mudança para valer nas suas condições objetivas e subjetivas de vida. Para esses submetidos a um cotidiano de violências, a violência é da natureza do mundo. É possível que essa gente só possa vir a se sentir atraída para um novo projeto democrático de Esquerda, se chamada por um programa, discurso e prática jacobinos. Mas onde estão os jacobinos?